Publicado originalmente no Facebook/Petrônio Gomes, em
31/10/2014.
A Sala do Passado.
Por Petrônio Gomes.
Atualmente a sala destinada ao encontro dos funcionários
aposentados do Banco do Brasil ocupa um local excelente, no primeiro pavimento
do edifício, junto aos elevadores e aos guichets de expediente.
Não se escuta nem se vê, do lado externo, o que se fala e o
que acontece no lado interno, graças à porta de vidro escuro que faz o papel de
fronteira. É uma porta de vai-vem com um aviso de que nem todos os mortais
devem entrar. Mas tenho o prazer de convidar o leitor a vir comigo.
Aquela fotografia ampliada na parede oposta à entrada é um
retrato de Aracaju quando tinha quarenta anos a menos. Podemos contar os
edifícios pelos dedos de uma das mãos.
Nesta outra parede, várias fotografias de colegas, em
grupos, colhidas na calçada do antigo prédio do Banco, na rua da frente.
Deveria ter sido pelas dezesseis horas, quando nos era permitido um intervalo
chorado. Lembro-me de que muitos aproveitavam esse tempo de folga temporária
para o namoro dos próprios automóveis. Éramos jovens, afinal de contas.
Esta mesa retangular que ocupa o centro da Sala, cercada de
poltronas confortáveis, é destinada às reuniões diárias dos colegas. É aqui
onde lembramos os casos engraçados e também as passagens tristes de nossa
passagem pelo Banco.
Mas esta outra mesa, redonda e coberta com feltro verde,
constitui o fraco de grande parte dos aposentados. Quando a porta de vidro se
abre, ouve-se um barulho difícil de ser identificado. Somos levados a pensar
que uma briga está acontecendo lá dentro, mas não se trata disto. As pancadas e
os gritos fazem parte do jogo de gamão diário. E gamão não tem graça quando não
batemos as pedras no taboleiro. Até campeonatos periódicos existem, com juízes,
caderninhos e inventários de jogos passados.
Que mais poderei mostrar da Sala do Passado? Talvez o que
ela tem de mais querido, de mais prazenteiro, e que, infelizmente, não se pode
exibir. São a própria razão de existir este recanto, estojo de lembranças que
cada um de nós tem guardadas.
Por alguns instantes, volto no tempo e torno a ver esses
mesmos colegas trabalhando, de camisas sociais e gravatas. Era um tempo
diferente, sem aparelhos de ar condicionado, mas mesmo assim, a gravata era tão
obrigatória como a folha de ponto. Apenas os ventiladores giravam, durante todo
o expediente, enquanto a fumaça dos navios que atracavam na “Ponte do Lima”
invadia o recinto do Banco...
E as condições de trabalho? Pesadas máquinas de
datilografia, inclusive algumas da marca “Continental”, de fabricação alemã, de
carro grande para a confecção de mapas que a gente compunha durante horas,
espelhando estudos estatísticos que a Direção exigia. Essas máquinas eram
fixadas nos tampões das carteiras e depois recolhidas, quando terminávamos o
trabalho mecânico, voltando as carteiras a exibir a superfície normal.
Quando se aproximava a época do balanço, a maioria dos
funcionários se ocupava em contar os números relativos aos juros que seriam
creditados na data aprazada. Para tanto, usávamos outras máquinas de calcular,
estranhas engenhocas que exigiam outro tipo de trabalho. Cada uma delas tinha
uma pequena maçaneta que deveríamos girar, tantas vezes para a direita quantos
fossem os números dos multiplicadores se quiséssemos multiplicar, tantas vezes
em sentido contrário se quiséssemos diminuir. Não havia munheca para trabalhar
durante as horas intermináveis que duravam esse trabalho.
A rotina do expediente, como é natural, amoldava-se aos
meios físicos de trabalho. Assim, havia todo um ritual para se atender ao
público, com extratos de contas escritos manualmente, cadernetas de depósitos e
outros artigos inimagináveis atualmente. Grande gavetas de aço guardavam as
fichas de depósitos, e uma ficha desaparecida constituía a mesma dor de cabeça
que os computadores de hoje também oferecem quando ocorrem os inevitáveis
equívocos.
Quanto à disciplina, é bastante lembrar que só havia dois
motivos para justificar o fato de ser encontrado um funcionário fora do Banco
em horário de expediente: ou estaria cumprindo dever externo ou estaria em
férias. Quem faltasse ao trabalho na quarta-feira de cinzas, por outro lado,
perderia a remuneração referente ao carnaval inteiro.
O numerário para outras agências e destas para a Capital era
transportado em automóveis comuns, sobre estradas poeirentas, muito mais extensas
do que as de hoje, quando as rodovias cortaram trechos desnecessários. No sul
do país, essas viagens também eram feitas por trem, com os malotes de dinheiro
sob os bancos, durante dois ou mais dias.
Havia um código disciplinar que informava sobre a conduta
dos funcionários. As respostas insatisfatórias às perguntas que esse código
formulava eram motivo para o atraso na promoção. Houve muita injustiça por
causa da prepotência de alguns chefes, não devidas ao sistema disciplinar, mas
à eterna fraqueza humana.
Todavia, a época era outra no tocante aos valores e aos
costumes, não apenas no Banco do Brasil, mas em todos os setores. A mesma
retidão que o Banco usava para com os funcionários, desde o concurso – que era
considerado um paradigma no Brasil inteiro – até o modo como cumpria os seus
deveres para com o funcionalismo, era também exercida por esses mesmos
funcionários na sua vida particular.
E nessa época em que ainda não havia a Universidade na
maioria das capitais, os nossos colegas se tornavam professores nas
cidadezinhas onde serviam. Quanto ao “status”, é bastante dizer que não
precisavam se preocupar com o que hoje é motivo de inquietação: o dinheiro que
recebiam era o suficiente para uma vida digna em qualquer parte do país.
Se a porta de vidro da Sala do Passado se abrir agora,
deixando passar para o seu interior um flagrante do mundo atual, nós é que
ficaremos deslumbrados com o salto de gigante que a vida executou. Como é
possível a gente saber o saldo da conta em qualquer cidade do país em poucos
minutos? E estamos perfeitamente convencidos de que jamais poderíamos aprender
a lidar com os meios sofisticados de agora.
Quanto ao mais, tudo continua exatamente como antes. Existem
ainda as pessoas alegres, como no nosso tempo, que nos faziam rir durante o
trabalho, como existem as injustiças, as perseguições. Isto porque a inveja
ainda não foi banida do mundo, a mediocridade não foi erradicada.
Quando você, meu querido amigo, estiver na fila de um dos
caixas no primeiro andar e ouvir um barulho como de briga quando a porta de
vidro estiver aberta, perdoe nossa algazarra de velhotes em torno de uma mesa
de dominó. Pois existem momentos em que nossa alegria também estanca, há
ocasiões em que deixamos de rir ao mesmo tempo. É quando uma notícia qualquer
nos chega de que outro colega irá compor o retrato do grupo daqueles que já
partiram...
Texto e imagens reproduzidos do Facebook/Fan Page/Petrônio
Gomes.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 01 de novembro de 2014.
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