terça-feira, 11 de março de 2014

Clair de Lune

Miró: "Clair de Lune"

Clair de Lune

Detardinha o perdulário aqui costuma ir ao sorvete. Virou luxo. Ali perto dos lagos da Orla, na Atalaia, tem um lugar maneiro com sorvetes dietéticos e mansas mesinhas com vista pro jardim. Boto um calçãozinho leve, pós-moderno, uma camisa churriada que eu mesmo reabilitei aparando as mangas (gosto delas assim) e vou, luxento e faceiro, ao meu Clair de Lune.

O que tem de turista de chinelões novos com ar de babaca, nem dá pra contar, mas o sossego delicioso me permite matutar a vida e espanar da cabeça a poeira do dia, abancado entre estranhos que não me cobram nem um boa-tarde.

È uma delícia!

Disse é? Mas já era. Arquibaldo, também chamado no Colégio Agrícola de Sarrabuio do Cão, me descobriu lá. Inda me fiz de manco numa retirada infeliz que não deu certo. Arquibaldo partiu gritando -Tonho! Tonho Amaral, quanto tempo! E não vinha só: arrastava Dona Ilka aos trancos, entre as mesinhas. Encangado nela um Arquibaldinho choroso, querendo já-já o seu sorvete.

Balbuciei com a boca cheia de mangaba – Oi! Você é Sarrabuio do Colégio Agrícola? Não mudou nada!
Ele, impando e feliz, abancou-se: - Esta é a minha esposa! E você, já casou?
Dona Ilka, um chouriço de cinta e colares de conta, atalhou o vexame:
- Muito prazer! Arquibaldo, o menino quer sorvete!

Sabe como é, leitor: casar, casei uma caralhada de vezes, mas quem vai explicar ao Arquibaldo que não é bem assim, que há casamentos e casamentos, outras opções, sinuosas justificativas. Enfim... que trabalho danado me deu lhe responder:

- Não, fiquei pra titia.

Daí, seguiu-se um baita constrangimento: ele arrastando os pés sem saber o que dizer até que dona Ilka, percebendo o impasse, acudiu:

- Venha, menino, vamos se servir. E com o jeitinho que as matronas têm, como quem abre pregas numa saia justa, salvou o momento:

- Vocês têm muito do que lembrar.

De fato: Arquibaldo fora companheiro meu nas molecagens do Colégio Agrícola do Quissamã, internos na década de cinquenta em regime prisional. Ele, rei da contravenção e eu, seu fiel adjunto. Cré com cré. Se havia que roubar goiabada no refeitório ou mesmo impor moral na fila do banheiro, nóis tava lá. Fugir, fugimos muito para os pomares da vizinhança e tínhamos na palma da mão os rios da região. Fugindo certa vez de carona na carroceria de um caminhão de carvão e chegamos em Aracaju tão sujos e desabonados que foi só chegar e voltar mais que depressa - que assim a polícia prende.

Ficamos então na sorveteria frente a frente pela eternidade de dois suspiros, até que Arquibaldo me fitou com a meiguice juvenil que eu julgava perdida:

- Tonho, eu lembro sempre de você E tocou, como um anjo remido, a minha infame cabeleira branca.

A lua inchou em busca do horizontes e eu fui pra casa ouvir Debussy.

Amaral Cavalcante

Postagem originária da página do Facebook/Minha Terra é SERGIPE, de 4 de março de 2014.

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