Miró: "Clair de Lune"
Clair de Lune
Detardinha o perdulário aqui costuma ir ao sorvete. Virou
luxo. Ali perto dos lagos da Orla, na Atalaia, tem um lugar maneiro com
sorvetes dietéticos e mansas mesinhas com vista pro jardim. Boto um calçãozinho
leve, pós-moderno, uma camisa churriada que eu mesmo reabilitei aparando as
mangas (gosto delas assim) e vou, luxento e faceiro, ao meu Clair de Lune.
O que tem de turista de chinelões novos com ar de babaca,
nem dá pra contar, mas o sossego delicioso me permite matutar a vida e espanar
da cabeça a poeira do dia, abancado entre estranhos que não me cobram nem um
boa-tarde.
È uma delícia!
Disse é? Mas já era. Arquibaldo, também chamado no Colégio
Agrícola de Sarrabuio do Cão, me descobriu lá. Inda me fiz de manco numa
retirada infeliz que não deu certo. Arquibaldo partiu gritando -Tonho! Tonho
Amaral, quanto tempo! E não vinha só: arrastava Dona Ilka aos trancos, entre as
mesinhas. Encangado nela um Arquibaldinho choroso, querendo já-já o seu
sorvete.
Balbuciei com a boca cheia de mangaba – Oi! Você é Sarrabuio
do Colégio Agrícola? Não mudou nada!
Ele, impando e feliz, abancou-se: - Esta é a minha esposa! E
você, já casou?
Dona Ilka, um chouriço de cinta e colares de conta, atalhou
o vexame:
- Muito prazer! Arquibaldo, o menino quer sorvete!
Sabe como é, leitor: casar, casei uma caralhada de vezes,
mas quem vai explicar ao Arquibaldo que não é bem assim, que há casamentos e
casamentos, outras opções, sinuosas justificativas. Enfim... que trabalho
danado me deu lhe responder:
- Não, fiquei pra titia.
Daí, seguiu-se um baita constrangimento: ele arrastando os
pés sem saber o que dizer até que dona Ilka, percebendo o impasse, acudiu:
- Venha, menino, vamos se servir. E com o jeitinho que as
matronas têm, como quem abre pregas numa saia justa, salvou o momento:
- Vocês têm muito do que lembrar.
De fato: Arquibaldo fora companheiro meu nas molecagens do
Colégio Agrícola do Quissamã, internos na década de cinquenta em regime
prisional. Ele, rei da contravenção e eu, seu fiel adjunto. Cré com cré. Se
havia que roubar goiabada no refeitório ou mesmo impor moral na fila do
banheiro, nóis tava lá. Fugir, fugimos muito para os pomares da vizinhança e
tínhamos na palma da mão os rios da região. Fugindo certa vez de carona na
carroceria de um caminhão de carvão e chegamos em Aracaju tão sujos e desabonados
que foi só chegar e voltar mais que depressa - que assim a polícia prende.
Ficamos então na sorveteria frente a frente pela eternidade
de dois suspiros, até que Arquibaldo me fitou com a meiguice juvenil que eu
julgava perdida:
- Tonho, eu lembro sempre de você E tocou, como um anjo
remido, a minha infame cabeleira branca.
A lua inchou em busca do horizontes e eu fui pra casa ouvir
Debussy.
Amaral Cavalcante
Postagem originária da página do Facebook/Minha Terra é SERGIPE, de 4 de março de 2014.
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