O dia em que eu morri
Era um Chevette cinza tinindo de novo o símbolo da minha
vida de playboy de araque, nos velozes anos 80. Dava até para pagar as módicas
prestações, mas o celerado comia gasolina com fome de pobre. Como eu já morava
no luxo da Atalaia, tinha que combinar com o gasômetro cada vez que saía pras
bandas da cidade, aquela malfadada conta de tantos quilômetros por litro que
sempre me limitava a curtição. Acabou que o tanque criou uma crosta de ferrugem
nos vinte mil reis, acometendo o carburador de engasgos incômodos e
consequentes insubordinações.
Vinha eu, bêbado e feliz do Iate Club, onde penetrara graças
às bondades do amigo Sobó, quando, de repente, já perto da ponte do Poxim, a
vista anuviou-se, o sono bateu com força e um resto de consciência me alertou:
cara vamos dormir...
Depois da ponte, guinei o Chevetinho para a entrada na beira
do rio e estacionei debaixo de uma frondosa árvore. Abri as portas, botei o
banco na amorosa posição de amasso, desatei o nó da gravata e sucumbi gostoso.
Na madrugada acordei meio leso, sem saber de mim. Vi
pássaros gorjeando em linda algaravia, pingos de luz peneirando-se nas folhas,
rumor de ondas diáfanas a cantar chuá chuá na beira do rio, um silêncio
sepulcral, luz demais no meu irresponsável despertar... era tão paradisíaco o
astral à minha volta que, num ápice, tive certeza de estava morto, no paraíso
católico da felicidade eterna, onde todo mundo estará sempre muito bem servido
de paisagens lindas, contemplações e insuportável ócio.
Durou segundos esta visão macabra. Botei uma primeira e saí
cantando pneus em direção a esta vida besta que consigo segurar até hoje, cheia
de alacridades e feiuras, onde ainda me encontro escondidinho das maravilhas do
céu.
Beber e dirigir, nunca mais.
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