Publicado originalmente no Facebook/Petrônio Gomes, em
20/05/2014.
Carolina.
Por Petrônio Gomes.
Houve uma época em minha existência em que a fascinação pelo
automóvel consumia todas as minhas horas não úteis, isto é, as que deveriam ter
sido empregadas em benefício de minha saúde – corporal e mental -, já deduzidas
as que haviam sido sugadas pelo contrato de trabalho com o Banco do Brasil.
Aconteceu a partir do ano da graça de 1954, ao apresentar-me
para tomar posse na terceira agência do Banco, onde ficaria até me aposentar.
Eu tinha vinte e cinco anos, casado e com dois filhos. O nível de vida dos novos
colegas suplantava o dos companheiros do Rio e de Niterói, onde eu havia
começado. A Agência não contava senão com uns cinquenta funcionários, alguns
deles amigos de infância. A maioria possuía grau superior ou se encaminhava
para isto. Também a maior parte residia em casa própria e talvez a metade
chegava para trabalhar de automóvel. Eram carros americanos, adquiridos de
segunda mão, naturalmente, mas bem tratados, reluzentes e tentadores para quem,
até o momento, só conhecia a bicicleta. Foi então que começou meu namoro.
A Agência do Banco ficava na Avenida Rio Branco, que,
juntamente com a Ivo do Prado, formavam a “Rua da Frente” de todos os tempos. O
prédio vizinho era ocupado pela administração e depósitos do ‘Trapiche Lima”.
Estávamos no ocaso da navegação de cabotagem, e alguns navios ainda aportavam
no local, inclusive o “Petrus”, que trouxe de Niterói nossa mudança. Recebíamos
grande parte da fuligem, trazida pelo vento nas horas primeiras da tarde, que a
jogava pelos basculantes superiores e se espalhavam sobre nossas carteiras.
Tínhamos quinze minutos de recreio, a partir das dezesseis
horas, e muitos de nós trocavam o refresco de mangaba e o café com leite pelos
comentários que se trocavam na calçada a respeito dos carros de cada um.
Falava-se dos melhoramentos nos veículos, das peças que não se encontravam nas
lojas, na cor da pintura a ser escolhida, em suma, de todos os assuntos
concernentes à paixão pelas quatro rodas. Também eu troquei o refresco pelo
bate-papo, fazendo planos para a aquisição futura, enquanto namorava os
automóveis dos colegas felizardos.
Lembro-me dos “Chevrolets” 1948 de João Raulito, José
Andrade e Hamilton Nogueira; do “Nash” de Helmann Lago, do “Pontiac” de Carlos
Duarte, do “Ford” de João Motta. Não me ocorre à lembrança o nome de um pequeno
automóvel que pertencia a Adalberto Moura, um dos meus favoritos.
É verdade que havia também os veículos humildes,
pertencentes aos funcionários menos graduados e aos que também não podiam
possuir veículo próprio, mas faziam das tripas coração para tê-lo.
Comecei a perder o sono, mas o meu dia, finalmente, chegou.
A oferta partiu de um amigo nosso, parente de minha mulher,
Lacy Rocha: um “Chevrolet” 1941... pela metade! Explico-me: o carro havia sido
batido e transformado em camioneta. Da metade até o pára-choque dianteiro, era
um carro de passeio; da metade para trás, um utilitário, com tampa de ferro na
traseira e tudo. Sobre essa tampa, gravada com tinta quase indelével, estava
escrito um nome. Parece-me estar lendo esse nome agora, tamanho o meu
contentamento de então: “CAROLINA”.
Desse dia em diante, todos os meus sábados haveriam de
pertencer à “Carolina”. Os dias úteis seriam apenas tempo de ajuntar os
problemas que seriam resolvidos na oficina de Eronides, um chapista dos melhores,
doutor indiscutível em recuperação de carros com osteoporose múltipla.
Enquanto os colegas se preparavam para o futebol, eu
arrastava o meu calhambeque até o galpão do “mestre” – tratamento conferido aos
profissionais que lidavam com as deformações indesejáveis dos veículos cansados
da vida, à custa de golpes de marreta e jatos de maçaricos incandescentes. Eu
ficava de cócoras a um canto da oficina, esperando, pacientemente, minha vez,
pois a clientela de Eronides era toda igual, isto é, de gente que tinha carro a
pulso.
Quem me visse, naquelas tardes infindáveis de sábado,
pensaria que eu estava a encorajar “Carolina”, pois as sessões de
“fisioterapia” eram de cortar o coração. Lá para as dezoito e trinta, Eronides
chegava, dizendo que tudo estava bem, como doutor que visita a sala de espera
depois de uma terrível cirurgia. Eu pagava mais uma operação, sentava-me ao
volante e voltava para casa com minha “Carolina”, sentindo-me um rei.
Pouco depois do café, caíamos no sono, ela e eu. No domingo,
a felicidade de entrever o vulto de “Carolina”, de plantão, diante da porta!
Adeus aos velhos ônibus da Avenida Hermes Fontes, às ruas cheias de lama no
inverno. ‘Carolina’ foi se recuperando, levou mais de dois meses sem ir à
oficina. Fiquei tão contente que comprei um toldo de nylon para ela, quatro
calotas novas e um visor “Ray-ban” para o seu pára-brisa. Mandei forrar os
bancos, aliás, o único banco, e comprei uma fechadura nova, além de um tapete.
Fui até Propriá com ela, numa viagem em que me acompanhou
minha mulher e meu sogro. Na ladeira de Muribeca, pisei o pedal de freio e nem
sinal. “Carolina” desceu aquela ladeira até o destino, ninguém sabe como.
Felizmente havia uma corrente no Posto Policial de Propriá, onde ela estancou.
Contei tudo aos meus colegas, mas todos eles se mostraram
solidários, aconselhando-me a não desistir, pois tudo aquilo era natural em
qualquer carro.
Mas o Tempo não se detém por nada. A família foi crescendo e
a margem consignável dos meus proventos foi diminuindo, a ponto de não me
prometer mais garantia de socorro nas oficinas. Um colega, que se julgava
entendido, chamou-me à parte para dizer-me que todos aqueles embelezamentos que
eu havia feito no carro, de nada valeriam na hora da venda. E mais: disse que
já estava na hora de vendê-la. Ele não sabia que eu havia feito tudo aquilo por
amor.
Terminei vendendo “Carolina”, não me lembro a quem. Via-a,
depois, diversas vezes, estacionada na rua de Itabaianinha. Eu passava para o
outro lado da rua, só para não vê-la sob o sol causticante. Depois, ela sumiu
de Aracaju. Um chofer de praça me contou que ela havia perdido o freio em uma
das ladeiras de São Cristóvão, mas que já havia saído da oficina. Eu ouvia
estas notícias como alguém que escuta notícias de um amigo ausente.
Muito tempo depois, no Mercado Municipal, avistei Carolina
estacionada a um canto. Tinha a pintura descascada, sem a bela capota que eu
lhe dera, e com apenas duas calotas, uma delas amassada. Estava com as molas
arriadas por causa do peso que jogaram sobre ela: uma carga enorme de
melancias.
Chorei, como estou chorando agora.
Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Fan Page/Petrônio
Gomes.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 12 de outubro de 2014.
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