Foi-se embora!
Passou um engenho de rapadura, um carcará pousado na cerca.
A vaquinha de ar pensativo regurgitando capim. O olho abestalhado de quem sabe
de tudo, mas nem tai. Um alvoroço de preás chispa invisível na beira do mato. O
calango também sustou danado, esperando imóvel no pé de mulungu, só o olho
rodando o mundo em volta - que calango não tem pressa. É capaz de ficar assim,
só o olho rodando, até a próxima trovoada.
Viu no mar de capim o vento assanhando as nhampupés. Uma
cotia ali debaixo do pé de araçá. Na encosta, casinhas em ponto de cruz, as
chaminés fumegando o café no oceano verdão do pasto.
Tudo ficando pra traz que ele estava indo embora, em cima de
um caminhão!
Queria sair de si, dos corredores da casa onde os fantasmas
brincavam de esconde-esconde. Queria ficar longe das besteiras sem serventia
nos alfarrábios da família.
Juntou sua coleção de sinos, seu farnel de auroras, pendurou
no peito o seu farnel de valentias e decidiu partir. Queria ser um coletor de
sonhos trepidantes, o resto da vida engolindo estrada na carroceria de um
caminhão.
Então, chegou detardinha.
O sol rajava em aquarelas sanguíneas. Traços surreais
reinventavam a paisagem em impossíveis croquis. Um mourão se alongando como
minarete, loooongo, se espreguiçando na estrada. Mais longe, uma pedra
derramava ouro sobre um filete de água. O velho dicurizeiro impedindo a
passagem, estendido em sombra e veracidade no chão da rodagem. Passou. Passou
um mandacaru rezando agoniado, que as coisas de Deus iam se envultando. A
paisagem pedia silêncio.
O cruzeiro na serra já se incendiava, um carneiro dourado
acomodado aos seus pés. Na sombra da mata um bordado de nuvens céleres,
acenava. Ovelhinhas e ogros tristes procuravam repouso, era chegada a hora!
Detardinha, o sono grená dos passarinhos peja os umbuzeiros
dessa paz restrita às criaturas de Deus, quando o por do sol pinta dourado a
vida e silencia o clamor das coisas. Então, o pé de jaca também já vai dormir
que debaixo dele uma vaca malhada lambe a cria e recomenda em sussurro: - Bezeeeerro,
vamos dorrrrmir.
Só ele inda corria na moldura da noite, indo-se embora na
carroceria de um caminhão.
Bateu uma dorzinha não sei onde, que nem dor direito era.
Era uma tristeza banal sem pé nem cabeça, a falta de não sei o que lhe
incomodando. Falta de ar não era que ele engolia o vento veloz, a natureza lhe
invadindo o nariz em lufadas e cheiros. Ar, novos ares lhe gastando a vida, o
peito inflando em possibilidades. Não viesse ninguém dormir nos seus cabelos
que o alvoroço ali era tanto... Escancarava a boca engolindo as alfaias da
noite e, corajoso ainda, guardava o sopro do mundo a lhe invadir o peito.
Mas escureceu de vez. A dor fininha muito doida pinicando!
Onde dormiria ele, cadê seus lençóis, as quenturas do quarto, uma moringa esfriando
no peitoril da janela? Onde a certeza dos pés ao chão, a vida jabá nos becos da
vida, as vielas confortáveis da cidade? A dor virou saudade.
Para que ele desce aqui!
Amaral Cavalcante.
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(Comentário de Marcelo Déda sobre a crônica "Foi-se
embora", postada aqui.)
Maravilha, homem!
Mereceria estar em qualquer antologia de histórias curtas,
sejam contos ou crônicas. Prosa porreta, grávida a não poder mais de poesia,
que lhe escorre dos parágrafos e pontos e vírgulas... Tá pronta. Carece apenas
de uma espanadinha sutil, como aquelas que se dá nos biscuits de porcelana
inglesa das avós só para espantar uma poeirinha, mas sem mexer na disposição
solene com que foram postos na mesa da sala em atitude de aguardar eternidade.
Tonho Viana certo dia lhe falou em "interesse
geral", "universalismos" que o texto exigiria para exibir-se em
livro. Você pensou e piscou: ninguém zomba mais da academia e reserva a ela
tanto temor quanto você? Pois toma aí! Quem tá nesse caminhão? Amaral? Não, nós
todos - encostos vivos montados na sua literatura para viajar e comer a poeira
dos sonhos que você sonhou por nós, bandido! É a fuga de casa, poetizada e
reinterpretada pela sua experiência de vida e de literatura.
O mundo rural da minha Simão Dias, replicando nos seus
singulares predicamentos, os campos de todo o mundo: "Oh! A vaca é a mesma
que eu vi num quadro do Van Gogh..." O mundo é a sua aldeia e só a
compreendendo na sua particularidade mais extrema é que você será capaz de
cantar o universo.
É a vontade do novo, da aventura, do desenlace. É um rito de
passagem que não se completa, atocaiado pela saudade matreira do bem-bom:
lençolzinho cheiroso, cama macia, cuscuz com leite no café-da-manhã, beijo de
mãe na testa, olhar de soslaio do pai conferindo a cria. É o medo da saudade,
tantas vezes maior do que ela.
E os cheiros... sua memória tem motor proustiano; é movida a
milhões de cheiros trazidos por milhões de ventos e brisas que inventam
perfumes e emprenham nuvens que você cataloga num tratado universal das tardes.
Na madrugada mineira, sóbrio e acordado num hotel de
Belzonte sou arrebatado pela beleza do seu texto, pela universalidade do seu
tema, pela arte com que você entretece sentimentos e os mistura ao concreto da
vida. E com Humor. Humor com H maiúsculo, surpreendente, inesperado,
filosófico.
Emocionei-me, eis tudo. E isso vale mais que uma missa, vale
uma missão. A missão do artista, do poeta, do artesão de memórias. Maravilha.
Marcelo Déda.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em 22 de maio de 2013.
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