Foto da página do Facebook "Minha Terra é SERGIPE"
"Duas irmãs bonitinhas que só vendo! Iara e Primavera eram sorveterias gêmeas, de arquitetura modernosa e simples. Localizadas lado a lado no Largo da Assembléia eram iguais em quase tudo, mas a Iara tinha um que a mais que encantava os fregueses. O sorvete saia mais vistoso, a cerveja mais gelada, a freqüência mais encantadora. Tanto que o lugar foi sendo conhecido apenas como “a Iara”, a irmã Primavera tendo que se contentar com o esquecimento malvado da cidade.
Era um bistrô à moda européia com cadeiras de ferro ao ar livre, guarda sóis coloridos e garçons fardados. Convergência de boêmios e intelectuais era também a passarela mais prestigiada pelas famílias em visita ao centro da cidade. Durante o dia, tomava-se lá um “banana split” magnífico, enquanto se viam desfilar por ali os melhores partidos da cidade - moças rebolando fortunas, colegiais em fuga matando aula, graves senhores apressados a caminho dos bancos e nós, gente sem eira nem beira admitida lá por conta do fulgor da inteligência, dos brilhos e papos que iluminavam a cidade. Releve o leitor o exagero do auto-elogio, mas era mais ou menos isso!
Quando a noite vinha, tudo começava ali: os encontros fortuitos, as pegações amorosas, as discussões literárias e as gargalhadas cruéis que os comentários sobre a vida dos outros provocava. É atemporal e condição essencial à permanência dos bares, a capacidade de reunir fuxiqueiros. O mais amigo sempre tira uma casquinha na vida do outro. E tem tira-gosto melhor?
Deu-se, então, que Seu Carlos, o dono do pedaço, construiu no andar de cima - respeitando a arquitetura original - uma boate com requisitos de elegância e modernidade: cadeiras pesadonas, mesas de jacarandá, espelhos mil e som da pesada. E não é que deu certo?
Calibrava-se a cabeça no Cacique Chá que ficava em frente e depois era na Boate da Iara que o melhor da cidade se divertia. Um respiradouro cultural. Elis Regina, ainda desconhecida, mas já uma pimentinha de cabelo tosado, cantou lá para nós. A “Primeira Festa Hippie de Aracaju” aconteceu escandalosamente lá e foi lá, nos temidos anos de chumbo, que abrigamos o recital “Joana em Flor”. Poema de Reinaldo Jardim em tournée de resistência, espetáculo de arena com as presenças dos imberbes Gonzaguinha, Benvindo Cerqueira, Reinaldo Gonzaga e Lia - gostosona subversiva que acabou se aninhando nos braços do poeta Mário Jorge. O espetáculo era maldito e incômodo aos coronéis.
Ingressos vendidos, tudo de cima, eis que a repressão botou as unhas e fora: - Tá tudo preso! Era o general Graciliano, chefe do SNI, limpando a cidade de quaisquer contratempos à visita do General Médice que na mesma noite estaria em Aracaju urdindo suas maldades. O elenco foi pra cadeia, restando-nos prestar solidariedade aos presos em forma de fartos hambúrgueres e de uma animada vigília etílica no Bar do Meio da Rua. Depois, chegaram os advogados e o bafafá aumentou. O fato rendeu manchete nacional, sendo a mais célebre a resposta do General Graciliano divulgada pelo Febeapá de Stanislaw Ponte Preta: - “Em Sergipe, quem entende de teatro é a polícia”. O Brasil inteiro riu conosco.
Então, veio o surto da decadência provincial com prefeitos biônicos desrespeitando as tradições da cidade no afã da modernidade. Toca-se a derrubar coisa velha. As sorveterias Iara e Iracema, monumentos de certa Aracaju bela e saudosa, cederam lugar a dois canteiros de espirradeiras municipais.
Até hoje ninguém perdoa".
Amaral Cavalcante - 25/03/2009
Postagem original na página do Facebook em 16 de agosto de 2011.
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