Vale relembrar:
Visitei um fauno
Cleomar Brandi mora num prédio antigo, ao lado do Hiper
G.Barbosa, numa ruinha opcional para quem trafega pela área e quer se livrar do
burburinho da Av. Francisco Porto. Estacionei (sempre tem vaga em frente, como
num oásis) e entrei na ampla área de lazer do prédio, andando cuidadoso entre
velocípedes desgovernados, babás bundudas de olhar pidão e um senhor
semimalhado de tênis caros e meias soquetes, rumo à caminhada das quatro no
calçadão da 13. Pernocas cinquentonas à mostra, algumas varizes, camiseta regata
Surf Bording atalhando a barriquinha teimosa, calção curto lascadinho de lado.
Uma figura plena de si locomovendo-se com a graça de Deus, tão lépido quanto
caricatural. Fiz que não vi. Afinal, fora visitar o sem pernas cadeirante, um
marombeiro cultural que mora ali e faz daquele átrio tão cheio de caminhantes a
ante-sala da sua perseverança.
Acolheu-me uma mãe heráldica: minúsculas manchas cinzas no
rosto –sol de antigas praias - cabelos brancos em coque elegante, olhar percuto
e postura juvenil.
-Cleomar se acordou agora, mas ainda não quis sair da
cama...
Saquei na hora: nesta tarde modorrenta de sexta-feira,
Cleomar mandara tudo à puta que o pariu e recolhera-se à lascívia dos lençóis,
curtindo o cheiro do seu próprio corpo nu, desobrigado do fastio das “boas
tardes” protocolares e do cafezinho insosso na repartição.
E foi no quarto onde eu o encontrei cercado de
sobrevivências. O monstro sagrado no seu cenário quotidiano, rindo entre
guarda-roupas e consoles, cercado de patuás e berimbaus da infância, com um
livro aberto cheirando a sono, indícios de sonhos revividos, bilhetes de amigos
lhe chamando à farra e uma meiota de Conhaque à mão.
Vejo os cartões postais de terras que Cleomar não nunca
visitou. Ele se acostumara a passear horizontes mais vastos, no universo do seu
próprio coração. Vejo, no espelho do guarda roupas, retratos de antigos
amores.. O olhar satisfeito de belas mulheres derramando o bálsamo do amor
sobre o corpo mutilado do velho lobo. Entendi que o que nos intriga nele é o esfuziante
amor pela plenitude da vida e a magnitude da sua doação ao amor de nós outros.
A visita foi curta, mas vi o que me interessava ver: um
fauno saltitante em sua relva memorial, soprando na flauta a canção do seu
destino.
Absolutamente pagão e belo.
Amaral Cavalcanti - agosto/2006.
Postagem originária do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 19 de janeiro de 2016.
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