Publicado originalmente no Facebook/Amaral Cavalcante, em
9/05/2015.
O Zunido das Cigarras.
Por Amaral Cavalcante.
Em Simão Dias morávamos na esquina da Praça Barão de Santa
Rosa à sombra de palmeiras centenárias, onde, ao cair da tarde, a cantoria
agoniada das cigarras nos cobria de melancolia. Deve vir da cantilena
indescritível das cigarras - um zunido cortante que parecia rasgar-se em desespero
– esta minha aflição pelo imponderável e certa saudade do silêncio imemorial
onde todas as palavras sucumbem, satisfeitas.
Sentadinho no batente de ardósia lá de casa eu curtia a
algazarra nas palmeiras, a inocência exposta ao clamor primitivo das cigarras,
torcendo por um fortuito amor que sobrevivesse àquelas friorentas tardes de
acasalamento.
Era uma casa com fachada em azulejos portugueses, 12
janelões envidraçados e um portal de pedra emoldurando a velha porta de
almofadas trabalhadas. Amplos salões e muitos corredores. No salão principal, o
das visitas, mantinha-se um conjunto de cadeiras de braço e sofá de palhinha,
rodeando uma mesinha onde se expunham os únicos objetos propriamente
decorativos da sala: um cristal, tão bruto quanto o gosto estético do meu pai,
uma florista de alabastro levantando a saia e um caramujo gigante, tão raro
naquelas bandas, onde eu costumava ouvir - como numa cornucópia - o barulho de
hipotéticas ondas regurgitando distâncias nas areias de uma longínqua praia.
O mar, tão incompreensível para mim, ainda era uma quimera
desconhecida e distante.
Seguindo o corredor central chegava-se à sala de jantar,
onde somente havia três vetustas mesas para muitos comensais e uma envidraçada
cristaleira onde se guardavam as sobras ancestrais das louças e cristais
familiares. Dali chegava-se à cozinha dominada por um velho fogão à lenha. de
ferro trabalhado, rodeado de prateleiras onde serenavam os alguidás, os tachos
de cobre, os panelões de barro, os cacos de frigir lombos e os utensílios de
temperar.
Ainda hoje, quando sonho com a casa onde nasci, é na cozinha
onde a minha saudade vai parar. É lá onde reencontro a família cuidando de
prover com os cheiros do cominho e da hortelã miúda, a memória do meu paladar.
A casa transformou-se em pousada, ou, como se chamava
naquele tempo, numa pensão. Minha mãe Corina era industriosa e quis transformar
aquela casa, com seus 12 espaçosos quartos, em hospedaria. Graças a isto
conheci grandes artistas circenses como Luiz Gonzaga, Marinêz, Jackson do
Padeiro, Wilson Simonal, Milionário e Zé Rico, o cantor José Augusto e palhaços
sergipanos como Gravatinha e Batalhinha, que foram nossos hóspedes em temporada
circense na cidade. Lembro-me do velho Gonzaga com três anelões facheando nos
dedos enquanto partia o suculento bife de fígado que tanto gostava. E da
cabeleira lourissima de Marinez sendo penteada para o show, uma cascata dourada
onde a forrozeira, vez por outra, enfiava as unhas enormes esmaltadas em
vermelho carmim para soltar os cachos.
Dos hóspedes memoráveis na pensão de Corina lembro-me de um
mestre do Tarô que se instalava regularmente lá em casa e recebia a fina flor
da sociedade simãodiense em consultas cabalísticas. Era uma frágil figura de
hábitos esquisitos e olhar perturbador que recebia no quarto as suas
consulentes. Não chegava pra quem queria. Instalei-me muitas vezes no quarto
vizinho para aprender com ele, quando conseguia decifrar os seus murmúrios, o
jeito certo de falar ao coração das pessoas.
Acho que vem daí, da compartilhada habitação na minha casa
ancestral, minha capacidade de conviver com pessoas diversas, a respeitar o
espaço dos outros, a servir com dignidade aos que me solicitam e,
principalmente, a me tornar transitável.
Tornei-me uma provecta cigarra, tardes e tardes zunindo amor
à sombra de palmeiras fugidias.
Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Amaral Cavalcante.
Postagem originária da página do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 23 de maio de 2015.
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