quinta-feira, 6 de junho de 2013

O Aparelho de Jenny


(Hoje nos despedimos de D, Jenny, mãe de Ilma Fontes, Esta crônica é pra ela).

O aparelho de Jenny

Pode-se dizer que ao golpe militar, nos anos 60, pegou-nos de calças na mão.
Era mesmo um jeans surrado, arrochado pelo cintão de couro cru com reluzente fivela que fardava os resistentes de então. Metidos nele e sobre tenros mocassins de pelica, marchávamos, pra cima e pra baixo, nesta Aracaju, a subverter a ordem unida dos milicos. Tratava-se de contrapor à burrice dos opressores a sabedoria dos nossos poetas, a ironia das nossas músicas, a arte que se derramava dos nossos mochilões pelas ruas. Formávamos então uma brigada psicodélica, temerosamente capaz de tudo no front da contravenção: eles que viessem nos impor urutus, ora, cabia-nos resistir com flores na cueca e perigosos argumentos.
Tinham-nos como explosivos e letais, os artistas.

Filhos de pais temerosos, um bando de desassombrados: Ilma Fontes, Marcos Mutti, Mara Lopes, Mário Jorge, Luiz Adelmo, Barrinhos, Joubert, Lu Spinelli, Zelita Correia, Alfredinho da Oxente, Augusto do 315, Augustinho Bezerra, Marinice, Alcides Melo, e mais meio mundo de gente cheia de atitude.

Mas tinha os poréns: onde se achar, onde comer, onde se reunir?
Quem iria quereer aquele bando de desgrenhados emporcalhando o sofá? Qual mãe zelosa vendo-nos cabeludos, unhas por fazer, suvaqueiras infames empestando o recinto, não empunharia a vassoura de piaçava e, como quem enxotasse sapos da varanda, “vade retro?”.

Pois era na casa de dona Jenny, mãe de Ilma Fontes, o nosso providencial aparelho. Mesa farta, sergipana, o belo cuscuz guarnecido - ora jabá, ora ovo estrelado em manteiga da terra - pra começar. O pão tostado na chapa, os biscoitinhos de fubá desmanchando na boca e a alva macaxeira com fiapos de lombo! Comer tão bem nos incitava à subversão, tramada sempre para depois do rango, que ninguém é de ferro!
Eu mesmo tinha sempre uma brilhante idéia para expor, providencialmente às oito horas da manhã ou senão às seis da tarde. À mesa, colherinha em riste, a fome derretendo impropérios sobre as rodelas de inhame, eu era o mais feroz cativista ... aliás, o mais bem servido comensal..

A casa de Dona Jenny, elegante modista de habilidades reconhecidas, assentava-se numa pedra de retidão: seu Aderbal, o marido, alto funcionário público federal , diretor vitalício (pensávamos) da Sunab, cuja retidão sempre nos impressionava, principalmente durante a Semana Santa, quando, invariavelmente, ele anunciava - respeitável e circunspeto nos noticiários da TV que não faltaria peixe de jeito nenhum, e que o preço do pescado seria controlado pela sua indiscutível autoridade. A moqueca estava salva!

Havia nele, dentro da casa que Jenny nos abria com o carinhoso humor de sergipana nata, Seu Aderbal, com sua autoridade bondosa e um pacífico desinteresse pelas novidades que infestavam o seu sofá. Era o mundo carburando ao lado e ele lá, com seus livros e seus jornais, poderosamente indiferente.

D. Jenny, sua amada e benfeitora dos nossos ideais, que se encarregasse de acolitar os sonhos libertários dos amigos da filha Ilma - criatura revolucionária, de predicados intelectuais que ainda agora inspira gerações.

Algum historiador, com maior fôlego que eu, que aborde com mais propriedade esses tempos e coloque o Aparelho de Jenny no merecido lugar que a História lhe deve.

Amaral Cavalcante.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em 5 de junho de 2013.

Nenhum comentário:

Postar um comentário