Maria Thetis Nunes fez história na cultura sergipana.
Maria Thetis Nunes tem uma bibliografia de mais de uma
dezena de livros, complementada com uma grande série de artigos e de pequenos
ensaios, publicados principalmente na Revista da UFS, no Caderno de Cultura do
Estudante, na Momento, revista da Gazeta de Sergipe, na Revista da Academia
Sergipana de Letras, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe,
dentre outras, produzida em 50 anos, com a qual revisita o repertório acumulado
de cinco séculos de documentos, informações, dados, fontes da história.
Ela fundou sua opção de cátedra com a consciência de que
havia em Sergipe de 1945, um vácuo na produção intelectual de temática
histórica, por conta da morte de Carvalho Lima Júnior, Clodomir Silva e Manoel
dos Passos de Oliveira Teles. Não apenas estes bravos pesquisadores, mas outros
mortos, como Felisbelo Freire, Ivo do Prado, Prado Sampaio, empobreceram a atividade
investigativa e crítica sergipana, e faziam imensa falta..
Seu horizonte começava nas salas de aula do velho Ateneu,
primeiro com Artur Fortes, o professor, o poeta, o líder, o homem amado pelas
suas idéias, morto justamente em 1945, depois com José Calasans, professor e
escritor múltiplo, que deu a Sergipe e a Bahia obras de notável contribuição
para o esclarecimento dos fatos, na travessia daquilo que se sabia – o
conhecimento anterior – para o que se passou a saber. A história, para uns arte,
para outros ciência, em Maria Thetis Nunes tomou a feição dinâmica da
continuidade, da seqüência das situações pelas quais passou e passa sempre a
humanidade, aqui representada pela população multiétnica que desde o século XVI
ocupa as terras sergipanas, entre os rios Real e São Francisco.
Ao transpor as portas do Ateneu para apresentar-se como
candidata a Cadeira de História, Maria Thetis Nunes refez a história. Estava
ali uma mulher, nascida em Itabaiana, formada na Bahia, jovem, aos 22 anos,
para expor sobre um povo estigmatizado, desconhecido em suas singularidades, a
quem a humanidade e notadamente a civilização ocidental deviam uma contribuição
inadiável. Em 7 capítulos, a candidata tratou do Islamismo, causas do seu
aparecimento e propagação, do mundo ocidental e o aparecimento dos árabes, da
literatura árabe e sua influência no mundo europeu oriental, da arte mulçumana
e sua contribuição à arte ocidental, da filosofia árabe, sua contribuição à
filosofia medieval, das ciências árabes. sua influência na Europa medieval, e
da influência mulçumana no Brasil. Era, na verdade, o roteiro de uma viagem
cultural ao mundo árabe. Os personagens que transitam na sua tese são artistas,
intelectuais, poetas, filósofos, médicos, cientistas, políticos ilustres, que guardam
fidelidade a uma visão do mundo. Os árabes, sua contribuição à civilização
ocidental libertou, na história refeita, todo um povo, toda uma imensa e antiga
cultura, que um dia pareceu sucumbirem pela força das armas, esmagadas pela
submissão e pela conversão. Na sua tese, Maria Thetis Nunes se valeu dos
fundamentos teóricos mais aceitos para recompor, na sua integralidade, a
existência de um povo plural, despojado dos preconceitos e estigmas que a luta
religiosa, num dia obscuro, promoveu.
Maria Thetis Nunes talvez guardasse na lembrança dos tempos
de menina, nas fraldas da grande serra, a representação do auto popular, do
ciclo natalino, a Chegança. Nele, a nau da cristandade aborda o quartel da
mourama, troca embaixadas, canta e dança, até dominar os mouros, obrigando-os a
se postarem de joelhos, convertendo-os, obrigando-os a aceitarem a fé católica.
A historiadora que nascia naquele Concurso do Ateneu não possuía, de nenhum
modo, razões para repetir a velha hegemonia, ainda hoje em prática, como
elemento de projeção nos embates políticos. Mas, com a sua tese a imaginação
cedia lugar a ação, a literatura e a história poderiam caminhar juntas, mas
cada uma com sua função.
A professora, atravessando o corredor dos interesses,
dividindo sua própria vitória com o contendor, o eminente Manoel Ribeiro, fez
do magistério da Geografia e da História uma experiência original de vida.
Trabalhou, dando aulas e dirigindo o próprio Ateneu, estudou no ISEB –
Instituto Superior de Estudos Brasileiros, aprofundou seus conhecimentos,
protegendo-os com a pátina da Nação e do nacionalismo e o compromisso do
desenvolvimento, opções que marcariam a sua conduta, tanto no exterior, Adida
Cultural na Argentina, dirigindo um Centro Cultural na cidade de Rosário, como
no retorno para casa, para o velho Ateneu, na incorporação ao ensino superior
na Faculdade Católica de Filosofia e da Universidade Federal de Sergipe, onde
produziu, praticamente, sua obra de historiadora.
Tomando A Educação como espelho da história, os Intelectuais
como representação simbólica da cultura sergipana engajada, e Sergipe como foco
geopolítico, Maria Thetis Nunes debruçou-se sobre as fontes documentais, os
jornais, os livros, os manuscritos, as fotografias, as biografias, toda aquela
bibliografia anterior, e mais o que estava por ser descoberto, encontrado, lido
e interpretado, e foi entregando à disposição dos leitores, obras que tomo a
liberdade de agrupá-las assim:
Refazendo a História – Os Árabes, sua contribuição à
civilização ocidental, 1945, 2ª edição em 2002.
A Educação como espelho da história – Ensino Secundário e
sociedade brasileira, 1962, reeditado em 1999; A Política educacional de Pombal
e sua repercussão no Brasil, 1983; História da Educação em Sergipe, 1984; A
Educação na Colônia: os Jesuítas, 1997.
Os intelectuais como representação simbólica da cultura
sergipana engajada – Silvio Romero e Manoel Bonfim. Pioneiros de uma ideologia,
1976, em parte refazendo o artigo Manoel Bonfim: pioneiro de uma ideologia
nacional, publicado no mesmo ano na Revista Momento; Manoel Luiz Azevedo d’
Araújo, educador da Ilustração, 1984; Carvalho Lima Júnior, 1986; Felisbelo
Freire, o historiador, 1987; João Ribeiro o intelectual de múltiplos
facetamentos, 1988; Tobias Barreto e a renovação do pensamento brasileiro,
1989; A contribuição de Felisbelo Freire a historiografia brasileira, 1996; O
sergipano Gilberto Amado, 1997; Alberto Carvalho é, primordialmente, um
artista, 1998, além de outros.
Sergipe como foco geopolítico – Sergipe no Processo de
Independência do Brasil, 1973; Ocupação territorial da Vila de Itabaiana: a
disputa entre lavradores e criadores, 1976; O Ciclo do Gado em Sergipe, 1978;
História de Sergipe a partir de 1820, 1978, escrito a partir do texto de aula
na Universidade de Brasília, sobre a participação sergipana no processo da
Independência do Brasil, estuda o período de validade da Carta Régia de 8 de
julho, os conflitos dos anos seguintes; Qual o significado do 24 de outubro?,
1978; Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes no Arquivo
histórico ultramarino, 1981; As culturas de subsistências em Sergipe; a farinha
de mandioca, 1987; Fundamentos econômicos da Literatura Sergipana, 1989;
Insurreição de Santo Amaro das Brotas, 1992; O Poder Legislativo e a sociedade
sergipana, 1994; A contribuição da Imprensa à História da Província de Sergipe,
1994; As Câmaras Municipais, sua atuação na Capitania de Sergipe D’El Rey,
1995; Sergipe Colonial I, 1996, continuação da História de Sergipe a partir de
1920, tratando dos fatos e personagens das primeiras décadas da Emancipação da
Província, a formação e a cisão da classe dominante sergipana. A publicação
contém um Anexo de documentos, dos quais podem ser destacados a Relação
abreviada da Cidade de Sergipe D’El Rey, povoações, vilas, Freguesias e suas
denominações pertencentes à mesma Cidade e sua Comarca, de José Teixeira da
Mata Bacelar, de 1817, e a Notícia Topográfica da Província de Sergipe,
redigida no ano de 1826, pelo padre Inácio Antonio Dormundo; A Totalidade na História,
um dos raros textos especificamente teórico, na linha de George Lucáks, 1997; O
bicentenário do baiano Antonio Pereira Rebouças, sua passagem pela Província de
Sergipe, 1998; A importância dos Arquivos Judiciários para a preservação da
memória nacional, 1998; Aspectos históricos da cidade de São Cristóvão, 1999;
Sergipe Colonial II, 1999, apesar da divergência do título é uma continuação
sistemática, dos estudos da História de Sergipe, focando mais amplamente o
recorte do seu interesse, produzindo um quadro ampliado em todas as direções;
Catálogo de Documentos avulsos da Capitania de Sergipe (com Lourival Santana),
1999; Catálogo de documentos avulsos da Capitania de Sergipe (com o professor
Lourival Santana), resultado do Inventário feito em 1981, que serviu de guia
para o Projeto Resgate. Foram publicados, também, os volumes I e II de Sergipe
Provincial e está pronto o inédito volume dedicado a Sergipe Republicano.
Por qualquer um dos textos, por qualquer dos eixos
temáticos, a obra de Maria Thetis Nunes arredonda a visão da história de
Sergipe e parecerá isenta das conotações presentes em outros autores, como
Antonio José da Silva Travassos, Felisbelo Freire, Clodomir Silva, que
alternaram as suas atividades intelectuais com a militância política. Em Maria
Thetis Nunes a história de Sergipe ganha uma intérprete que faz da análise
crítica o suporte validador do método. Nas suas páginas Sergipe, a terra, a
economia, a vida social da capital e das demais cidades, as atividades lúdicas
e intelectuais, os vultos da cultura compõem um quadro dialético, em pleno
movimento.
Eleita para a Academia Sergipana de Letras, substituindo
Orlando Dantas na Cadeira 39, ela tomou posse em 6 de abril de 1983, fazendo
sua declaração de fé como intelectual:
“Creio na marcha da História, no Devenir, no advento de um
mundo mais justo e mais humano. Apesar de ter vivido parte da minha vida sob
dois regimes ditatoriais, cultuo a liberdade.
“Também estou com os que lutam defendendo a cultura
ancestral, dilacerada em nome da civilização cristã ocidental, como fazem os
povos da África negra ou da Ásia tropical.
“E nesse desfilar constante de gerações em que, como
professora, estou envolvida, encontro o rejuvenescimento espiritual que domina
as marcas físicas deixadas pelos anos. Renovação que advém do esforço de
entender os jovens, suas inquietações, seus problemas ante o mundo que somos
responsáveis por lhes oferecer. Renovação, também, que brota da angústia de
encontrar respostas para explicar-lhes a realidade vigente, permitindo o
reencontro da esperança perdida dos que se tornaram céticos em face de tanta
mistificação com que, por tanto tempo, se vem tentando justificar os erros e os
fracassos da nossa civilização.
“Assim tem sido minha atitude diante da vida. Assim tenho caminhado,
impulsionada pela luta e pela esperança.”
A morte de Maria Thetis Nunes, no dia 25 de outubro, aos 86
anos, consterna e orfaniza Sergipe.
Foto e texto reproduzidos do site: visitearacaju.com.br
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em 9 de junho de 2013.
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