Publicado originalmente no Facebook/Lilian Rocha, em
12.11.2015.
O Último Passo de Dança.
Por Lilian Rocha.
Ela começou na esquina da rua Boquim com Itabaiana, quase em
frente à casa onde eu morava. E foi uma novidade pra Aracaju! Afinal, uma
escola de ‘dança moderna’, numa cidadezinha que só conhecia o ballet, tinha que
dar o que falar!
Naquele tempo, Aracaju era pequenininha e conhecia todo
mundo pelo nome. Até a única escola de ballet que existia – era conhecida pelo
nome da sua dona. Era o ‘ballet de Dorinha”, que funcionava na rua Lagarto.
‘Dorinha’ era como carinhosamente chamávamos Auxiliadora,
uma das filhas de D. Ildete Teixeira, a confeiteira de bolos mais famosa da
cidade. Teve dez filhos, todos muito bonitos.
E foi ali mesmo, nos fundos da casa de sua mãe, que na
década de 60, Dorinha Teixeira montou a sua “Academia Sergipana de Ballet”.
Muitas crianças fizeram ballet com ela, inclusive eu.
Apesar de criança, lembro-me perfeitamente do salão grande
onde tínhamos aula e o fascínio que eu sentia na hora de calçar a meia rosa e
amarrar as fitas da sapatilha em volta do tornozelo. Poucos minutos depois, surgia
Dorinha, loura e linda, em sua sapatilha de ponta. Parecia uma princesa.
Com Dorinha, aprendi as cinco posições básicas dos braços e
dos pés, além de movimentos famosos como ‘plié’, ‘demi-plié’, ‘tendu’ e
‘arabesque’, que depois eu repetia sozinha em casa, fazendo de barra a
cabeceira da minha cama, sonhando com o dia em que também usaria uma sapatilha
de ponta...
No fim do ano, ela apresentava o festival de ballet no
Teatro Atheneu, um verdadeiro espetáculo. Lembro-me, particularmente, de um,
chamado “O sonho de Natasha”, uma menina que sonhava que estava numa floresta e
se encontrava com dezenas de animais. Coube à Ângela Margarida Torres, a melhor
bailarina da época, o papel de Natasha, e a melhor cena, pra mim inesquecível,
era o encontro do caçador com o pássaro. Não me lembro quem era o caçador, mas
me lembro que o pássaro era Moema Maynard, outra grande bailarina, que roubava
os aplausos de todo mundo, quando se debatia, em passos de balé, até tombar no
chão, vítima da arma do caçador.
Fui uma das três formiguinhas que Natasha também encontrou
naquela floresta encantada e minha participação no palco foi tão breve quanto a
minha carreira de bailarina, pois no ano seguinte, Dorinha se casou e como seu
marido não queria que ela continuasse ensinando, ela teve que fechar a
escolinha e com ela, foram-se todos os meus sonhos...
Foi quando uma certa baiana, chamada Lu Spinelli,
desembarcou em Aracaju e virou nossa cidade de cabeça pra baixo...
Chegou sem nada, com o marido e um filho de 4 anos, mas com
uma determinação que eu nunca conheci igual. Começou por montar um pequeno
estúdio e pôs-se a oferecer ‘dança moderna’. Em vez de sapatilhas, músicas
clássicas e passos em francês, o universo de Lu eram malhas coloridas, pés
descalços e coreografias inventadas por ela, ao som de músicas que comumente
eram tocadas no rádio.
Mas só quando ela se mudou para a Av. Ivo do Prado, foi que
nós nos conhecemos. Fui uma de suas muitas alunas e ainda me lembro com
detalhes do grande salão onde fazíamos aula.
Além de professora, Lu era uma pessoa muito divertida, de
alto astral, que não tinha muita paciência com tristezas. Por isso, eu gostava
de ficar um pouco mais ali, depois que a aula terminava, só pra ouvir as
histórias que ela contava, às gargalhadas, entre um cigarro e outro. Perto de
Lu, tudo era simples e possível, pois ela era a primeira a rir de suas próprias
dificuldades.
Em setembro de 1974, Lu resolveu participar do III Festival
de Arte de São Cristóvão, um evento grandioso que durava 3 dias e que enchia a
cidade de gente. A programação contava com apresentações de música, dança,
teatro e oficinas de arte.
E lá fomos nós. Não me lembro quantos éramos nem tampouco
quem foram meus companheiros de viagem, mas sou capaz de me lembrar de cada
detalhe daquela aventura. Da nossa hospedagem no Convento do Carmo, da água que
faltou para o banho, dos ensaios dentro da igreja, dos nossos risos que enchiam
de vida aquelas paredes silenciosas e seculares, e finalmente, da nossa
apresentação em cima de um palco de madeira improvisado, em plena Praça São
Francisco, a mais importante da cidade, sob os olhares atentos de milhares de
espectadores, vindos de todos os cantos do país...
De tudo isso me lembrei, quando recebi ontem uma notícia que
me tirou o chão. Foi-se Lu Spinelli. Sorrateiramente, do mesmo jeito que chegou
aqui. Sem lenço, sem documento. Veio só com a sua dança. E com ela, conseguiu
voar tão alto que se tornou uma das dançarinas mais conceituadas dessa terra
que a acolheu e que ela chamava de sua.
Foi-se Lu. Bruscamente. Sem lenço, sem documento. Sem nos
dar tempo para despedidas.
Foi-se só com a sua dança. E com um único salto, virou uma
estrela...
(Lilian Rocha - 12.11.15).
Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Lilian Rocha.
Postagem originária do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 12 de novembro de 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário