Publicado originalmente na página do Facebook/Petrônio
Gomes.
Carro de Praça.
Por Petrônio Gomes.
Era só sair da Agência Central do Banco do Brasil, levantar
um braço e Orlando me respondia lá da praça. Dois minutos depois, eu entrava no
seu “Chevette” e nem precisava dizer-lhe onde morava.
Com seus setenta e poucos anos e sempre feliz com a vida,
Orlando talvez tenha sido um dos últimos remanescentes dos profissionais do
ramo em Aracaju, nos doces anos em que a cidade adormecia antes das vinte e
duas horas.
Invariavelmente ele me perguntava como eu ia de saúde e logo
depois, começávamos a recordar velhas histórias de sua profissão...
Como aquela de “Carrinho”, que, surpreendido por um violento
aguaceiro no largo onde hoje se ergue o edifício do INAMPS, na Praça João
XXIII, sentiu que o fogo do seu automóvel havia apagado. Quando alguns rapazes
se aproximaram oferecendo ajuda para empurrar o veículo, não pensaram que
estavam afrontando o orgulho de um velho conhecedor: “Não vão empurrar coisa
nenhuma, isso é um Ford!”
E era mesmo, embora houvesse sido fabricado em 1941, durante
o esforço de guerra. Qualquer pingo que caísse em certo objeto que ficava junto
ao motor, era o suficiente para que o carro estancasse imediatamente.
Lá pelos anos quarenta, Aracaju tinha cerca de seiscentos
mil habitantes a menos, o bastante para bocejar logo após a conversa fiada na
calçada, depois do cuscuz vespertino. O transporte coletivo cabia aos bondes,
logo depois substituídos pelas “marinetes”, pequenos ônibus com capacidade reduzida
e que perdiam o fôlego quando aparecia uma ladeira qualquer.
O bonde, entretanto, terá sido o mais racional e mais
econômico veículo de transporte coletivo das cidades, além de mais poético,
certamente. Nunca se ouviu falar de alguém atropelado por um bonde, mesmo
porque ele fazia mais barulho do que se imagina. Havia passageiros nos
estribos, sim, mas só aos domingos, quando todos queriam chegar a tempo para o
cinema de Juca Barreto, sessão das quinze horas, a famosa “matinée do
perfume”...
Para o cinema ou para qualquer ponto da cidade, tendo pressa
o cidadão e estando vestido convenientemente, o certo mesmo era chamar um carro
de praça. Mas por que este nome?
Táxi é nome importado e não quer dizer coisa alguma para o
cidadão comum. Muito mais lógico era o nome alusivo ao verdadeiro fim do
veículo, isto é, um automóvel à disposição do público e que ficava estacionado
na praça. Para chamá-lo, a cidade inteira conhecia o número do telefone: 131.
Tirava-se o fone do gancho, girava-se a manivela umas quinze vezes e ouvia-se
uma suave resposta do outro lado, o mesmo alô de todas as épocas. O usuário
perguntava então: “É do Centro?”
Só poderia ser, pois todos os telefones eram ligados à
Central, de onde as duas telefonistas completavam a chamada, quando não faltava
energia. Minutos depois, ouvia-se uma buzina na porta. O chofer descia, abria a
porta traseira e recebia o distinto passageiro, uma cena romântica que
atualmente estão querendo revitalizar com o nome de “atendimento
personalizado”.
Os carros, quase todos de procedência norteamericana, tinham
tapetes felpudos nos dois espaços entre os assentos. Eram robustos veículos de
chaparia maciça e brilhavam mais do que mesa envernizada. Os pneus dos carros
mais paparicados tinham faixas brancas, sempre esfregadas pelos proprietários
nas horas de folga.
Os motoristas mais conhecidos eram contratados para longas
viagens, como Recife, pois medo de avião nunca saiu de moda. Mas as estradas
eram empiçarradas e precárias, assim como as nossas ruas, que eram quase todas
pavimentadas com paralelepípedos.
Justamente por causa de tais condições, os profissionais do
volante eram mais cuidadosos, olhavam de outro modo o público. A indústria
automobilística nacional ainda não existia e os consertos eram feitos nas
oficinas para tudo. Quanto mais cuidado, melhor. Hoje, quase não se conserta
coisa alguma, trocam-se peças.
E quase todos os motoristas profissionais de Aracaju viviam
dignamente, possuíam suas residências confortáveis e educaram seus filhos, como
qualquer cidadão de profissão liberal. Como em nossa cidade, naquele tempo, os
automóveis particulares se contavam pelos dedos, conhecíamos muitas pessoas
pelos carros que passavam.
Orlando nunca teve o dissabor de ver seu automóvel batido e
nunca foi chamado à atenção por qualquer passageiro. Em conversa com seus
colegas mais jovens, ele gostava de aconselhar a todos o valor da cortesia, do
amor à profissão.
Quando chamo um táxi atualmente, fico a comparar o
tratamento que recebíamos no passado, quando as ruas não eram asfaltadas e o
táxi era apenas... um carro de praça.
(Imagens: aracajuantigga.blogspot.com).
Fotos e texto reproduzidos do Facebook/Fan Page/Petrônio
Gomes.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE. de 10 de junho de 2014.
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