Carlos Firpo discursa em solenidade no Hospital Santa Isabel, em 1958.
Nicola Mandarino.
Infonet - Blog Lúcio Prado - 29/02/2008.
O Assassinato de Carlos Firpo.
Abril de 2008 marca o cinquentenário do assassinato de
Carlos Firpo, que foi Prefeito de Aracaju. Afinal, quem mandou matar o médico?
Por Lúcio Antônio Prado Dias.
“...não, não te lamentes não, que a pura verdade, virá
depor! Deus, não esquece o coração, que sempre foi fiel, no amor” (
“Injustiçada”, de Antonio Garcia Filho).
Aracaju acordou sombria na manhã de 29 de abril de 1958, com
nuvens cinzentas prenunciando chuva. Mas tempestade maior estava por vir.
Estarrecida, a sociedade sergipana tomava conhecimento pela rádio, do
assassinato do médico Carlos Firpo. Na madrugada, sua casa foi invadida por uma
pessoa que, no quarto onde dormia, desferiu-lhe certeiras e vigorosas facadas
no abdome que o levaram, minutos depois, à morte.
Naquela noite, Firpo estava sozinho. Milena, sua esposa, no
momento do crime, encontrava-se no quarto ao lado, onde dormia ao lado das
filhas Julieta e Maria das Graças. Milena, em depoimento à Polícia, disse que
em razão de um resfriado prolongado de Maria das Graças, que dificultava o seu
sono, vinha dormindo nos últimos dias, no quarto dela.
A família residia numa bela casa de andar localizada à rua
Campos, que ainda hoje preserva o antigo estilo arquitetônico. Carlos,
surpreendido no meio da noite, gritou pedindo socorro. O médico Aloísio
Andrade, seu vizinho, ouviu os gritos e abrindo a janela de casa, ainda chegou
a ver um vulto, correndo pela rua em direção ao rio. Rápido, foi à casa do
amigo e deu-lhe o primeiro atendimento.
“ - Veja o que fizeram comigo, Aloísio...! “
“ - Que aconteceu, Carlos, quem fez isso?” perguntou-lhe,
aflito.
“ - Não vi, estava escuro, não deu para enxergar. Acordei
ferido!”, respondeu, esvaindo-se em sangue, com o abdome aberto, exteriorizando
as alças intestinais, duas delas seccionadas.
“ - Leve-me para o hospital”, suplicou aos gritos, enquanto
Aloísio presta-lhe os primeiros socorros.
Nesse momento, chegam outros amigos
entre eles Canuto Garcia Moreno, cirurgião, que ajuda Aloísio nos cuidados ao
ferido, colocando-lhe uma toalha umedecida sobre o abdome. Lourival Bomfim
tenta acalmar Milena e as filhas, naquele momento completamente desnorteadas. A
comoção é geral. Os médicos, por fim, atendem ao apelo de Firpo. Seguem às
pressas para o Hospital de Cirurgia, mas ele não resiste aos graves ferimentos
e morre no Centro Cirúrgico.
Carlos Firpo era Diretor do Hospital Santa Isabel desde
1949, onde operou uma completa transformação naquela instituição, obtendo o
credenciamento do IAPI, o que aumentou consideravelmente a subvenção do
nosocômio. Além disso, construiu a maternidade, implantou os serviços de RX e
laboratório, lavanderia mecânica, edificou a clausura das Irmãs, o centro
cirúrgico, estendendo todos os benefícios aos mais carentes, aos pobres
indigentes. Carlos era também um militante político, udenista atuante e
influente, ex-Prefeito de Aracaju, que lutava com afinco para ter o seu nome
acolhido como vice-governador na chapa de Heribaldo Vieira. Entretanto, ambos
não eram os preferidos da cúpula udenista, liderada por Leandro Maciel,
governador de então. Mas Carlos lutava pela indicação. Era querido pela
população, médico humanista de muito labor e coragem. No tempo da 2ª Grande
Guerra, casara-se com Milena Napolioni Mandarino, moça muito bonita, de pele bem
alva e modos requintados, filha de Nicola Mandarino.
Nicola era um imigrante italiano que em Sergipe prosperou e
tornou-se homem de muitas posses. Morava numa bela casa situada à Praça Olímpio
Campos, onde hoje é o Palácio Episcopal, no início da Rua Santa Luzia. A
família adquiriu bens, entre eles uma propriedade no povoado Colégio, em
Itaporanga, que possuía uma bela casa assobradada no alto da colina, com vista
deslumbrante do leito do Rio Vaza-Barris. Milena, de hábitos recatados e de
fina educação, estudava no Colégio do Salvador, sua família possuía muitos
amigos e tinha um convívio social intenso. Entre os amigos da família, Afonso
Ferreira Lima, mais conhecido por Afonsinho, vindo da Bahia para estudar em
Aracaju e o médico Carlos Firpo, jovem inteligente e garboso. Milena e Carlos
começam a namorar e durante o noivado e casamento, vem a Segunda Guerra
Mundial. Afonsinho, como era mais conhecido, segue a carreira militar,
tornando-se exímio piloto de avião, com a missão de patrulhar o litoral brasileiro.
Já Carlos Firpo destaca-se na medicina, muito estimado pelos pacientes e com
forte atuação política. A revolta que toma conta da população contra os
imigrantes dos países da tríplice aliança, Alemanha, Itália e Japão, não poupa
Nicola Mandarino, acusado injustamente de colaborar com o Eixo como espião do
regime de Hitler e Mussolini. Da sua varanda do sobrado no povoado Colégio, ele
supostamente transmitia informações para os submarinos alemães sobre a
localização dos navios e cargueiros brasileiros que navegavam pelo nosso
litoral. A população descontrolada clama por vingança, depois do torpedeamento
e afundamento de navios no litoral de Sergipe. Na verdade, nunca ficou provado
que Nicola Mandarino fosse espião. Um velho rádio receptor foi confundido com
um transmissor e jogado pela janela. O enxoval de casamento de Milena também
recebe o mesmo tratamento, sendo destruído pela população ensandecida.
Definitivamente, Nicola não era um espião.
Casados, Carlos e Milena vão residir na casa da Rua Campos e
é nessa casa que acontece o assassinato de Firpo, episódio que fica conhecido
como o “Crime da Rua Campos”, com forte repercussão em Sergipe e em todo o
país. Na época, Nicola residia na casa, com a filha, o genro e as netas. Nela
ainda trabalhava e residia uma empregada doméstica, que depois seria testemunha
importante no desenrolar do processo.
Em janeiro de 1955, quebrando uma longa tradição
oligárquica, é empossado no Governo de Sergipe o engenheiro Leandro Maciel, da
UDN, com forte apoio popular. Na véspera da sua posse, ocorrida no dia 31 de
janeiro, trazendo autoridades e jornalistas de várias partes do país, pousava
no aeroporto de Aracaju um avião da FAB pilotado pelo major Afonso Ferreira
Lima, o Afonsinho, que na oportunidade reveria os amigos, entre eles, a família
Mandarino. Carlos Firpo, nessa época, já era um médico muito estimado, havia
sido Prefeito de Aracaju, dirigia o Hospital Santa Isabel e era prócer político
destacado e amigo do vice-governador empossado, o também médico José Machado de
Souza. Durante o governo de Leandro, Firpo ampliou a sua área de influência e
passou a lutar bravamente pela sua indicação como vice-governador na chapa da
situação nas eleições que aconteceriam em 1958.
O que se segue após o crime da rua Campos, é uma sucessão de
equívocos e excessos policiais, com relatos de violência e mais assassinatos,
com a população mobilizada e informada pela imprensa de todos os passos da
investigação. Até o Lions Clube entra na investigação. A “sinistra trama
passional”, de acordo com a versão policial, invade as páginas dos jornais de
todo o país e monopoliza as atenções por muito tempo.
Dias depois do assassinato, um chofer de táxi de Aracaju
procura a polícia e relata que teria conduzido a Paulo Afonso, no dia seguinte
ao crime, dois indivíduos que lhe pagaram sem reclamar a importância de Cr$
5.000,00. Segundo palavras do chofer, eles teriam presenciado o cortejo fúnebre
de Carlos Firpo em direção ao Cemitério Santa Isabel, ficando impressionados
com a multidão que o acompanhava e, comentando entre si, mostravam-se
assustados com a repercussão do crime. Quando o táxi cruzou a divisa
Sergipe-Bahia, um deles teria suspirado, aliviado: ”Dessa estamos livres”. A
partir da pista, a polícia chegou aos suspeitos e deu ordem de prisão aos dois:
José Euclides Timóteo de Lima e José Pereira dos Santos, mais conhecido como
Pereirinha.
O conhecimento entre os dois vinha do tempo em que
trabalharam juntos na CHESF. Timóteo havia sido demitido por se envolver em
briga com colegas dentro da empresa e Pereirinha ainda trabalhava na
hidroelétrica e para se ausentar do trabalho para a missão criminosa, teria
alegado a necessidade de cuidar de um parente que se encontrava doente. Eles
teriam chegado a Aracaju pelo menos uma semana antes do assassinato e
prepararam com detalhes todos os passos do crime. Pressionado, Pereirinha
confessou ter sido o autor do crime.
De Timóteo, à custa de torturas que o levaram à morte,
obtiveram uma confissão. Mesmo negando inicialmente qualquer envolvimento com o
crime, quando acareado com Pereirinha, este confirmou a ação. Timóteo passou a
ser brutalmente torturado e terminou citando dois nomes: Enock Pessoa de
Carvalho, com quem teve um primeiro contato na Bahia e depois o Coronel Afonso
Correia de Lima, o Afonsinho, que se encontrava na cidade dias antes do
assassinato. Não resistindo à tortura, Timóteo veio a falecer na madrugada da
terça-feira e o laudo médico-legista, assinado pelo Dr.Antonio Coutinho, dava
como causa-mortis uma miocardite crônica (!).
Ao longo do tempo, ficou clara a intenção de conduzir as
investigações para o que parecia mais óbvio: um crime passional. O que se
seguiu posteriormente foram confissões forjadas pelos rigores da pressão e da
tortura intelectual impostas a pessoas que trabalhavam na casa do casal e que
culminaram com a prisão de Milena e Afonsinho, sob a acusação de terem
encomendado o crime, pois estariam supostamente envolvidos em relações
extraconjugais.
Paralelamente, outras versões corriam de boca-em-boca:
poderia o crime ter motivações políticas? Quem estaria interessado na morte de
Firpo, que insistia em ser candidato a vice-governador? Disputas políticas
teria sido a causa do crime? O Jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, através
de uma série de longos artigos, passou a defender essa tese, chegando a
insinuar possíveis beneficiários no assassinato. O Dr.Machado chegou a ser
injustamente envolvido nesse episódio. A SOMESE, à época presidida por Canuto
Garcia Moreno e a Associação Comercial de Sergipe, por outro médico, Gileno da
Silveira Lima, promoveram um grandioso ato público de desagravo ao Dr.Machado,
com um palanque armado em frente a sua casa, na Rua Pacatuba. Durante horas,
uma multidão de admiradores, populares e políticos, incluindo o próprio
Governador, prestou solidariedade ao grande pediatra, com discursos inflamados.
A sociedade sergipana, entretanto, estava dividida nas suas
opiniões. Exigia a elucidação do crime, teria sido um crime político ou um
crime passional? Um outro aspecto que não chegou a ser aprofundado pelas
investigações dizia respeito a transações comerciais entre Nicola Mandarino e
outras pessoas, inclusive o genro. Especulava-se que por causa das perseguições
sofridas em função de sua origem italiana e do confisco determinado pelo
Governo brasileiro no tempo da Guerra, Nicola teria transferido parte dos seus
bens para terceiros. Este fato foi comentado pelo jornalista Luiz Eduardo
Costa, um estudioso do assunto, em artigo publicado na imprensa, onde diz que o
inquérito “não levou em conta o desaparecimento de documentos que estariam
guardados cuidadosamente pelo Dr. Firpo”.
Dos personagens envolvidos nesse relato, Nicola Mandarino
morreu na década de 60. Pereirinha, condenado a vinte e cinco anos de cadeia,
cumpriu a pena e morreu na década de 90. Afonsinho morreu na década de 70 e
Milena continua viva e reside em Salvador. Na época, eles chegaram a ser presos
na Penitenciária de Aracaju, saindo apenas para prestar depoimentos. Por terem
sido impronunciados pelo STF, nunca foram a júri popular. Enquanto estava
detida, Milena recebeu o carinho e a solidariedade de muitas pessoas, que não
acreditavam na sua participação no crime. O médico e intelectual Antonio Garcia
chegou a compor a música “Injustiçada”, que foi gravada pela RCA Victor na voz
de Alcides Gerardes, um cantor de projeção nacional, que fez grande sucesso na
década de 50. “...Deus, não esquece o coração, que sempre foi fiel, no
amor...Não, não te lamentes tanto agora, que sobre a noite da calúnia,
ressurgirá a aurora...”
O fato é que, passados 50 anos, o assassinato de Carlos
Firpo ainda é um mistério a desafiar a imaginação das pessoas.
Fontes:
1. Wynne, J.Pires.Livro:História de Sergipe, vol.2.Rio de
Janeiro:Editora Pongetti, 1973.
2. Figueiredo, Ariosvaldo.Livro:História Política de
Sergipe.Aracaju.
3. Impressos: coleção do Jornal Última Hora, diversas
edições.1958.
4. Impressos: artigo publicado na imprensa pelo jornalista
Luiz Eduardo Costa, em 2006.
5. Impressos: diversas edições dos jornais O Nordeste, Folha
Popular, Correio de Aracaju, A Cruzada e o Diário de Sergipe, 1958.
6. Documentos: acervo da Biblioteca particular do médico
Petrônio Gomes.
7. Depoimento pessoal do Dr. Antonio Garcia Filho, em 1994.
Fotos e texto reproduzidos do site: infonet.com.br/lucioprado
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 10 de junho de 2014.