Preciosas Brefáias do Folclore Sergipano.*
Edição de 1967.
Resenha do livro "Brefáias e Burundangas do Folclore
Sergipano", de José de Carvalho Déda (1898-1968), apresentada por Amâncio
Cardoso dos Santos Neto durante reunião de estudos do grupo Defensores do
Patrimônio Cultural Sergipano no dia 10 de abril de 2011. Originalmente
publicada em: Aracaju Magazine, Aracaju, ago. 2002, p. 18-19.
DÉDA, José de Carvalho. Brefáias e Burundangas do Folclore
Sergipano. Aracaju, Livraria Regina, 1967.
Por Amâncio Cardoso dos Santos Neto *
e Francisco José Alves **
Há algumas semanas, foi lançada a segunda edição de Brefáias
e Burundangas do Folclore Sergipano (Maceió: Edições Catavento, 2001. 252 p.)
de José de Carvalho Déda (1898-1968). A primeira edição foi em 1967 (Aracaju,
Livraria Regina). A atual foi organizada e anotada pelo jornalista e
folclorista Luiz Antônio Barreto, sob os auspícios, em boa hora, do Instituto
Tancredo Neves/Sergipe.
O magistrado Carvalho Déda era um profundo conhecedor da
cultura sergipana. Ele ouvia, vivenciava e anotava os fatos do acervo do saber
popular. Apesar de ser natural de Paripiranga/BA, foi em Simão Dias que
saboreou e coletou as preciosidades do folclore local. Além disto, percorreu
vários municípios em busca de seu objeto de pesquisa. Ele foi, em verdade, um
garimpeiro de nossa cultura popular. Fez parte de uma geração de folcloristas
que produziram estudos a partir da década de 40 e 50 do século XX, tais como
Mário Cabral; Paulo de Carvalho-Neto; José Calasans (1915-2001) e Felte Bezerra
(1908-1990).
Edição de 2008.
Brefáias e Burundangas é composto por 36 (trinta e seis)
entradas de assuntos. O material enfeixado pelo folclorista transita no plano
das crenças e superstições (a reza da cabra preta, as “promessas”, a figura do
diabo, as Luzernas, o lobisomem, as encomendações das almas, ...); no dos usos
e costumes (os velórios, os apelidos, os juramentos, as épocas e as datas,
preconceitos de honra, modéstias e exageros, ...); no da linguagem popular (as
vozes dos animais, provérbios, linguagem dos caminhões, ...); no plano da lúdica
(o reisado, o parafuso, as argolinhas, o quebra-pote, o pau de sebo, o “judas”,
o “casamento de cavalo”, o folguedo de São Gonçalo, a víspora, os
“trancalínguas”, o “gato e o rato”, ...); no das artes e das técnicas
(remédios, “batalhões” ou “trabalhadas”, caçadas e armadilhas, ...); no da
música (trovas, repentes e desafios); no da literatura oral (o burro carregado
de louça, a mulher do piolho, o papa-hóstia e a freguesona, uma estória de
formiga, o milho de “Bita”, a sogra de Cristo, as galinhas do vigário, etc.).
A obra de Carvalho Déda é uma miríade de usos e costumes do
nosso povo. Alguns deles até desaparecidos. É o caso da Festa do Barricão,
assim descrita por Carvalho Déda: “puxando um desordenado préstito pelas ruas
da localidade, ia uma carroça com uma enorme barrica, dentro da qual um
mascarado, em trajes femininos, cantava versos alusivos ao celibato, que eram
respondidos, em coro, pelos acompanhantes ao som da sanfona e reco-reco. Ao
passar por uma casa [onde] havia uma solteirona, o carro parava e o mascarado
do barricão se exibia com exagero, fingindo um angustioso pranto de vitalina.”
(p. 119). A Festa do Barricão, muito em voga no interior de Sergipe até o final
do século XIX e início do XX, teria sido relegada, segundo o autor, devido às
irreverências das cantorias que feriam a sensibilidade das vitalinas, criando
casos de polícia.
Carvalho Déda presta homenagem aos trovadores João Canário e
“Sá” Martinha, também esquecidos, conforme ele, pela memória sergipana.
João Canário, natural de Itabaina/SE, faz parte da infância
profunda do autor que ficava “horas e horas, esquecido do mundo, escutando o
velho cantador.” (p. 151). Canário era cego e tinha desgosto por não saber
tocar viola. Cantava ao som de um “querequexé” de folhas de flandres. Ele era
perfeito na rima, no repente e nos “desafios”. Fazia suas funções nas feiras do
interior guiado por um menino ativo, apelidado por Caboco Liso, que era os
olhos do cego. Boêmio incorrigível, morreu na miséria e “esquecido dos
sergipanos !”, lastima Carvalho Déda (p. 150).
A trovadora “Sá” Martinha do Sabão não cantava em feiras,
somente em sua casa ou na dos amigos, e sempre “sob as vistas do pacato
esposo.” (p. 151). Fora bonita; perdera uma vista e, tempos depois, nascera e
crescera-lhe um bócio. A maledicência popular alcunhara-a de Martinha do papão,
humilhando e azucrinando a cantadora. Conta-se que por ter perdido um desafio
para um poeta “carapinha” ou de cor negra, ela deixara de cantar. A assistência
de moças brancas e preconceituosas do sertão sergipano viu a trovadora perder
nos versos para o “pachola pixaim”. E nunca mais se repetiriam “as tertúlias na
bucólica casinha do Sabão.” (p. 154).
O livro de Carvalho Déda é um repositório sentimental e
valioso das manifestações populares sergipanas. Esta característica foi
reconhecida por uma sumidade nos estudos do folclore nacional, Luiz da Câmara
Cascudo (1898-1986). Ele escreveu, em 1965, uma “Apreciação” sobre Brefáias e
Burundangas que na atual edição foi posta pelo organizador como “Fortuna
Crítica”, acompanhada pelo texto “Folclore sergipano” do antropólogo Felte
Bezerra (1908-1990), também constante da 1ª edição.
Brefáias e Burundangas é encerrado por uma espécie de
apêndice. Falo do registro de 809 (oitocentos e nove) provérbios populares e um
glossário com 957 (novecentos e cinqüenta e sete) vocábulos. Uma espécie de
sergipanês, como escreveu o apresentador da obra, Luiz Antônio Barreto.
Neste vocabulário, é curiosa, dentre outras coisas, a
variedade de referência ao ânus ou região anal. Tais variações demonstram,
entre o povo, o quanto esta parte do corpo é carregada semanticamente. Certo é
que há um uso prolífero de variantes na cultura popular referente ao ânus. Eis
os vocábulos que aludem ao referido órgão anotados pelo autor: bugueiro;
bufante; broca; chicote; federal; fevereiro; farinheiro; felipe; pregas;
regueira (região anal) e cuelho (o pelo do ânus).
A coleta de Carvalho Déda é um documentário vivo e
diversificado do folclore sergipano. É um registro de fatos folclóricos
recomendados tanto ao estudioso das Ciências Humanas quanto àqueles que
simplesmente têm curiosidade para conhecer uma parcela significativa do
patrimônio cultural de nossa gente. Ou seja, esta recolha espera tanto a
análise do especialista para tentar interpretar a cultura local e discutir sua
identidade, quanto satisfazer o espírito daqueles que reconhecem a concomitante
universalidade e especificidade dos traços da cultura sergipana.
Por fim, deixemos o eminente Câmara Cascado avaliar
sinteticamente Brefáias e Burundangas do Folclore Sergipano: “Trata-se,
evidentemente, de um livro útil, movimentado, bem brasileiro, dedicado às bases
fundamentais e eternas do seu Espírito, a cultura tradicional do seu povo.” (p.
249).
* Mestre em História Social pela Universidade Estadual de
Campinas; Graduado em História e Especialista em Geografia Agrária pela
Universidade Federal de Sergipe; Professor do Instituto Federal de Sergipe -
acneto@infonet.com.br.
** Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro; e Mestre em Antropologia pela Universidade de Brasília; Graduado em
História pela Universidade Federal de Sergipe; Professor do Departamento de
História da Universidade Federal de Sergipe - fjalves@infonet.com.br.
Postagem original no Blog dpcs-ufs.blogspot.com.br
Por Defensores do Patrimônio Cultural Sergipano.
*Foto e texto reproduzidos do Blog dpcs-ufs.blogspot.com.br
Postagem original na página do Facebook/Minha Terra é SERGIPE, em 8 de Novembro de 2012.
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