Infonet > Blog Lúcio Prado > 05/08/2014.
A bengala de Armando Domingues.
Por Lúcio Antônio Prado Dias.
A bengala ficou como símbolo de uma amizade
“Um arrepio na noite... De repente um homem morto na rua.
O rosto permanece vivo das suas palavras.
Dos cantos dos olhos descem dois grandes rios.
Onde irão parar esses rios de tão intensa alvura?”
(José Sampaio).
Recentemente tivemos conhecimento pela imprensa que a
Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe aprovou projeto-de-lei que resgata
o mandato de antigos parlamentares cassados por atos de arbítrio, em função de
posições políticas e ideológicas. Na lista, entre outros, vimos o nome do Dr.
Armando Domingues, falecido em Salvador em 12 de dezembro de 1992, com 80 anos.
Um ato de justiça que se faz ao cidadão, político e médico,
clínico geral de reconhecida capacidade, de raciocínio rápido e investigativo,
com instinto certeiro em seus diagnósticos, que se enquadraria muito bem nos
dias de hoje no personagem do seriado de TV “House”, só que um Dr. Gregory
House humanista, bem diferente do que se apresenta na televisão, desprovido de
boas maneiras e com a frieza de um detetive profissional, mas que chega aos
mais difíceis diagnósticos.
O Dr. Armando Domingues também chegava aos mais difíceis
diagnósticos através de uma paciente anamnese e um exame físico rigoroso, num
tempo em que não existiam exames especializados, quando muito um reduzido
laboratório de análises clínicas, e de imagens, apenas, as fornecidas pelo
tradicional Raios-X.
Armando Domingues da Silva nasceu em 20 de maio de 1912, em
Entre Rios, Bahia. Formou-se em 1935 pela Faculdade de Medicina da Bahia, com
apenas 23 anos. Iniciou suas atividades médicas em Itabaiana, transferindo-se
para Aracaju onde foi trabalhar no Hospital Colônia, sendo considerado um dos
pioneiros da psiquiatria em Sergipe. Humanista, teve militância política no
Partido Comunista. Com a queda do Estado Novo foi eleito deputado estadual,
obtendo consagradora votação. Destacou-se como orador popular e tribuno
brilhante na Assembleia Legislativa, sendo admirado e respeitado até pelos seus
adversários. Foi um dos líderes do histórico comício realizado em frente ao
Cinema Rio Branco, onde foi assassinado o ativista Anízio Dário pelas forças da
reação.
Nas lides políticas, participou de todos os grandes
movimentos nacionais, pela entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial contra
as potencias do eixo, da campanha “O Petróleo é nosso” e do movimento pela
anistia a Luiz Carlos Prestes. Teve seu mandato cassado no governo Dutra, sendo
demitido de todos os empregos que tinha em Sergipe. Retornou à Bahia, onde
atuou na Fundação Gonçalo Muniz, em Salvador e comandou o Laboratório de
Análises Clínicas da Maternidade Tsylla Balbino até se aposentar em 1982 aos 70
anos. Atuou como perito do INSS e manteve com a filha, Maria Lúcia, um
laboratório de análises clínicas.
Mas o que tem a ver a bengala com Armando Domingues? Quem me
contou a história foi Lauro de Brito Porto, um dos grandes amigos do esculápio
vermelho. Lauro era depositário de uma bengala que pertenceu ao médico Armando
Domingues, numa fase de sua vida. De todos os seus pertences, confessou Lauro,
aquele era o mais precioso, como símbolo de uma sólida amizade que existiu
entre os dois desde os tempos da vetusta Faculdade de Medicina da Bahia, no
Terreiro de Jesus. Como colegas de turma, eles já se destacavam nas lutas
estudantis. Lauro inclusive chegou a ser preso em 1932 após levantar, em
rebelião, os estudantes de Medicina em apoio a Revolução Constitucionalista.
Formados em 1935, vieram atuar em Sergipe. Em 1945, com a
redemocratização do país propiciada pelo desfecho da Segunda Guerra que
expurgou os regimes ditatoriais fascistas, Armando elegeu-se deputado estadual
pelo Partido Comunista. De espirito irrequieto, tribuno vibrante, Armando
destacou-se no parlamento sergipano, numa época em que o Partido Comunista
atingiu o seu ápice de popularidade e representatividade política, chegando a
eleger três vereadores em Aracaju, entre eles o destemido líder Carlos Garcia,
em 1947.
Em 1945 o PCB retornara à legalidade, obtendo seu registro
eleitoral. Nas eleições presidenciais, realizadas em dezembro, o partido lançou
a candidatura de Iedo Fiúza e obteve cerca de 10% do total de votos, tanto para
o candidato apoiado como para a chapa do partido para a Assembleia Nacional
Constituinte, elegendo 14 deputados federais e um senador, Luiz Carlos Prestes.
Com cerca de duzentos mil filiados em 1947, seu registro é
novamente cancelado pelo TSE, no governo do marechal Eurico Gaspar Dutra e seus
parlamentares são cassados. As reações contra a arbitrariedade se espalham pelo
país e em Sergipe um comício é marcado para a Rua da Frente, em protesto contra
a cassação dos mandatos e em defesa da democracia e da paz, ameaçadas pela corrida
armamentista dos Estados Unidos.
O governador José Rollemberg Leite reage, não quer a
manifestação e manda a tropa dissolver a concentração. Para despistar, os
manifestantes mudam o ato para a Rua João Pessoa, em frente ao Cinema Rio
Branco, único local que possuía iluminação adequada. A polícia de cavalaria
investe contra o povo, que se defende como pode. Nessa hora, tudo pode
representar uma arma de defesa, até mesmo uma simples bengala.
No meio do tumulto, um tiro disparado pela polícia fere
mortalmente o operário negro Anísio Dário e a partir daí acontece uma correria
pra todos os lados. Lauro Porto recolhe a bengala perdida na peleja e a guarda
consigo. Os comunistas são perseguidos, perdem seus empregos, Armando, com
mandato parlamentar cassado, transfere-se para Salvador e abandona a militância
em prol de uma bem sucedida trajetória médica. A bengala de Armando Domingues
fica sob a guarda de Lauro Porto por 67 anos, até a sua morte. Dias depois,
visitei os filhos de Dr. Lauro em sua residência e contei-lhes a história da
bengala. Uma antiga empregada da família lembrou de tê-la visto certa vez,
quando arrumava a casa.
Passadas algumas semanas, recebemos em doação para o Museu
Médico a bengala de Armando Domingues, finalmente localizada pela família de
Lauro Porto atrás de um armário. Para os idealistas de 30 e 40, seus ideais
convergiam para a libertação do povo. O socialismo era o regime das esperanças:
contra a fome, o desemprego, a desigualdade social. O verdadeiro simbolismo da
bengala não foi só representar o elo que uniu Lauro e Armando em amizade
fraterna.
Texto e imagem reproduzidos do site: infonet.com.br/lucioprado
Postagem originária do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 28 de outubro de 2015.
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