Foto: Márcio Garcez
Infonet - Blog Luíz A. Barreto - 22/08/2005.
Sergival e as coisas do caçuá.
Por Luíz Antônio Barreto.
O folclore, marcado pela tradição universal, apropriada e
ambientada para dar visibilidade geográfica as comunidades subalternas, contraponto
das classes dominantes, tem sido lembrado nestes dias que antecederam e
procederam ao 22 de agosto, data simbólica, desde que apareceu pela primeira
vez, na segunda metade do século XIX, significando cultura do povo. O conceito
não ia além da tradução das palavras folk, como povo, e lore, como sabedoria,
mas as coletas e edições tinham, aquele tempo, já muitos títulos.
A velha poesia de tradição oral da Escócia, da Inglaterra e
da Alemanha ganharam antologias, publicadas como testemunho de velhas
tradições, mantidas entre os povos de origem e disseminadas para outros povos,
a partir da expansão cartográfica que as viagens dos mareantes espanhóis e
portugueses empreenderam para a descoberta do Novo Mundo. Coube aos irmâos
Grimm transformarem as poesias populares em prosa, em contos ou estórias que
ganharam o mundo, universalizadas na memória dos povos.
Gonçalo Fernandes Trancoso com seus Contos e Estórias de
Proveito e Exemplo, livro de 1575, pode ser considerado um dos autores
pioneiros das tradições narrativas em língua portuguesa e no Brasil seu nome
passou a significar todo o universo popular, ainda que as estórias de sua
autoria não tenham ficado no repertório social do Brasil. Celso de Magalhães e
Silvio Romero (Lagarto, 1851 – Rio de Janeiro, 1914) na década de 1870,
iniciaram as primeiras coletas das tradições brasileiras. Magalhães pesquisou
os romances do Maranhão, enquanto Silvio Romero ampliou o horizonte das suas
pesquisas, coletando romances, cantos, contos, folhetos de cordel, folguedos,
danças, que estão em sua vasta bibliografia. Não havia, contudo, conceito claro
do que era folclore. A pesquisa precedeu, em muito, a formulação teórica que
destacou, na história da cultura brasileira, o vasto campo das tradições
populares e das manifestações de cultura popular dos próprios brasileiros.
Outro sergipano, João Ribeiro (Laranjeiras, 1860 – Rio de
Janeiro, 1934) ministrou um Curso de Folclore, em 1913, na Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro e estabeleceu fundamentos teóricos e um conceito que
permaneceu válido por algumas décadas. Para o mestre Folclore é a concepção do
mundo e da vida, pelo povo. Antonio Gramsci, anos depois, ampliou o conceito,
identificando o povo como classes subalternas, instrumentais, em oposição às
classes oficiais, dominantes, hegemônicas. A discussão tomou outro rumo apenas
em 1951, quando da realização do I Congresso Brasileiro de Folclore, ao ensejo
do Centenário de Nascimento de Sílvio Romero. Os congressistas entenderam que o
povo tinha modos próprios de sentir e de agir, que deveriam ser considerados
como essenciais às suas criações culturais. O Congresso de 1954 em Buenos
Aires, que contou com representação brasileira, consolidou o entendimento,
orientando autores como Luiz da Câmara Cascudo, para quem o folclore tinha como
características o anonimato, a oralidade, a persistência e a antigüidade,
Renato Almeida, que apontava a espontaneidade como característica e Edison
Carneiro, que chamou a atenção para a dinâmica dos fatos folclóricos.
Faltou dizer que mestres universitários e executivos da ONU,
através do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), tinham
o folclore na conta de um antídoto para as guerras e que poderia servir de
mediação entre as comunidades nacionais e internacionais. Por isto mesmo foi
criada a Comissão Nacional de Folclore, junto ao IBECC, animando as festas e
promovendo as tradições nacionais no Brasil, ramificadndo a CNF com as
Comissões estaduais, que reuniam estudiosos e militantes da causa da tradição
cultural. A parte referente a criação própria, com história e geografia nossas,
ficava sem pesquisa e sem interpretação. Os pesquisadores andavam muito em
busca de um texto de romance, de conto, de qualquer cantiga, mas não davam
bolas para aquilo que o povo, diariamente, criava, fazendo da própria vida o
enredo para suas criações. A cultura popular, diferentemente do folclore,
carece ainda de ampla coleta e identificação, para que seu repertório possa
também sobreviver, ao lado do grande acervo de tradições. Alguns artistas, como
Antonio Nóbrega, fazem esforços para que folclore e cultura popular tinturem
suas artes, dando vida e alma ao que é feito em nome da cultura.
Vários outros, no passado, como Jararaca, Manezinho Araújo,
Augusto Calheiros, recolheram emboladas, diretamente da voz do povo, e com elas
fizeram grande sucesso. Luiz Gonzaga, o maior dos artistas brasileiros, pela
genuinidade, tem cheiro e tudo o mais da gente brasileira do Nordeste.
Sergival fez nome entre os artistas sergipanos quando ainda
era percussionista e parceiro de Sena, formando uma dupla de sucesso em
Aracaju. Passando a cuidar da carreira solo percorreu, sem pressa, os caminhos
que o levaram ao popular, sem descuidar, contudo, da formação intelectual, indo
buscar na Academia Sergipana de Letras, como integrante do MAC – Movimento de
Apoio Acadêmico Antonio Garcia Filho, uma ilustração intelectual.
Tomando o caçuá das feiras, vestindo-se como os brincantes,
soltando a voz que poucos conheciam, Sergival começou a aparecer, sempre ao
lado de músicos, artistas populares, dando forma a uma performance bem ao gosto
do povo. A fórmula deu certo e consagrou o artista, que canta, toca pandeiro e
outros instrumentos, dança, recita, revisita a saga popular com fidelidade de
expressão.
O CD Sergival e as coisas do caçuá é bem um mostruário,
partilhado com outros artistas da sergipanidade, como Léo Mittaráquis, Ismar
Barreto, João Silva Franco, o João Sapateiro, Antonio Carlos du Aracaju e os
Aboiadores de Porto da Folha, Mingo Santana, Marcos Guedes, Mestre Sabau, que
pega na fonte o eixo estético da lúdica sergipana, tornando-o, no melhor
estilo, expressões legítimas da arte e da cultura. Sergival conta, ainda, com a
genialidade de Dominguinhos, adornando os motivos do CD.
Sergival e as coisas do caçuá é um pedaço sincero e
surpreendente da arte e da cultura de Sergipe e do povo sergipano. Uma nova
estrada que vale a pena seguir, como exercício de linguagem, identificada com o
lastro popular que marca a vida do povo.
Texto e foto reproduzidos do site:
infonet.com.br/luisantoniobarreto
Fonte "Pesquise - Pesquisa de Sergipe / InfoNet".
Contatos: institutotobiasbarreto@infonet.com.br.
Postagem originária da página do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 9 de Abril de 2015.
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