Amaral Cavalcante.
(Crônica antiga, com intervenções de Marcelo Déda e Jozailto
Lima)
O jornalista Zeca Déda
. Ele publicou no seu jornal “A Semana” o meu primeiro
poema, “Elegia a Cristina”, dedicado a uma menina fatalmente morta pelo irmão
que brincava com uma espingarda. Doloroso poema juvenil meio que plagiado dos
grandes sonetistas que nutriam minha incipiente criatividade, numa antologia de
cabeceira. Era a coletânia “Os mais Belos poemas de Amor” organizada por J.G.
de Araújo Jorge que me fora presenteada, aos 16 anos, por mamãe Corina. Foi o
meu primeiro sucesso literário.
O jornal “A semana” saía aos sábados. Cândida Candhão,
arauto das fofocas municipais, chegou lá em casa de manhã com o jornal já
recortado, transtornada e tilintando os berloques de ouro 14 nos peitões
descomunais: - minha fia, que coisa linda! E toca a declamar pra Corina o
trágico soneto que o filho dela, eu, tinha publicado no jornal, sobre a morte
da menina, filha do prefeito Nelson Pinto.
Candhão viciou-me no aplauso e me consagrou poeta na
freguesia de Simão Dias.
Mas pensa que foi fácil publicar no “A Semana”? Não com o
casmurro Zeca Déda. Tinha oficina e escritório na Rua do Comércio, onde se
abriam três portas. Minto! Uma delas, a do seu birô de chefe político estava
sempre fechada. Quem quisesse entrar que arrodeasse. Lá dentro, um mundo
incompreensível, mas fascinante: caixas tipográficas, a monstruosa prensa em
seus claps claps , uma temerária guilhotina encostada na parede frontal e
papéis, papéis derramados pelo chão. Eu costumava chegar de mansinho, moleque invisível,
e ali ficava sem ser percebido, vendo aquele homem de faina diferente - o terno
cáqui manchado de tinta - a comandar as doidas engrenagens. Não me via, nem
nunca conversava comigo.
Um dia cheguei com o poema manuscrito e ele me disse:
- Vou publicar
Conquistar a aprovação daquele monstro sagrado, foi , para o
menino encabulado que eu era, o maior incentivo que eu já encontrai na vida,
afinal, o jornalista Zeca Déda era a maior expressão de cultura e dignidade
intelectual da minha cidade.
O Grêmio Estudantil “Padre Mário Reis” do Ginásio Carvalho
Neto, promoveu um Júri Simulado sobre Calabar e o Dr. Zeca Déda, indicou o
filho, Arthur Oscar, recém formado bacharel, como seu opositor na tribuna. Era
o velho rábula debicando da Academia.
Zeca Déda acusava o réu com brilhante e convincente
oratória, justificada na história oficial, aqueles argumentos de traição à
Coroa portuguesa dos compêndios escolares, enquanto Arthur Oscar defendia a
opção política do Réu pela colonização holandesa.
Durou dois dias este embate entre aqueles titãns da
oratória, mas Arthur tornou-se logo o ídolo da meninada descrente da história
colegial e Calabar foi absolvido!
Eventos como este fizeram de Simão Dias um celeiro de
inteligência.
Amaral Cavalcante- 2008
ADENDO:
Relendo “Retrato Diverso”, livro do poeta Jozailto Lima
publicado em 2004, achei o poema “Litania Para um Avô Alheio”tratando do velho
Zeca Déda, e bem melhor do que eu.
O danado do Jozailto recorreu à poesia – esta linguagem
divina que eu persigo tanto – para revelar o avô cheirando a mato, o taciturno
sertanejo que caçava tatus, conduzido por artes da política aos vórtices do
poder, em Aracaju, onde fez história como Deputado Estadual.
É ler pra crer.
Litania para um avô alheio
Jozailto Lima
P/Marcelo Déda
Aracaju era longe, o fim do mundo.
Distância para Rural e Homens Grandes
Ousados, destemidos, capazes de enfrentar
Os dias, a fúria da lama e das tempestades.
Aracaju era longe, uma trilha para tropas e tropeiros.
Aracaju era uma marca na ansiedade da infância.
Aracaju era coisa pro avô enorme, sisudo,
Vindo da mata adentro de Paripiranga,
Que desafiava o pensamento, as montarias,
Que domava palavras, amava os livros, limava linotipos
E enfileirava informações do mundo vasto e distante.
Aracaju era coisa pro avô.
Que lavrava madeira e esculpia o universo em xilogravuras
Que envergava chapéu de feltro, capa preta
Era farto em afetos, na palavra, no nó do compromisso
Mas que escasseava em sorrisos e cumprimentos estranhos
-“Oh dona Martinha. Eu lhe dei boa tarde? Então
desconsidere”-
Aracaju era uma coisa pro avô-coragem
Aracaju era coisa pro avô que se perdia
No mato ermo, na flora esconsa, na caça demorada
Que abatia os veados e destranhava os tatus
Num tempo em que abater veados e tatus
Não tinha correlação nenhuma com o politicamente incorreto.
Aracaju, uma pradaria do avô que distribuía tinta e papel
E premiava com afagos às cabeças netos que produzissem
O desenho e a caricatura mais exata na desaproximação.
Toda esta distância, toda a ansiedade de Aracaju encurtava
Na seda azul do papel e no cheiro da maçã que ainda
Hoje inunda toda Simão Dias e esta infância que insiste
Em não passar, como aquele avô vindo das matas
Paripiranguenses com o sobrenome dos Carvalhos.
Hoje Aracaju é tão perto, tão âmago do mundo,
Como aquele avô alheio que tantos trazem dentro de si.
Rerpáros de Marcelo Déda:
Rua Joviniano de Carvalho, também conhecida como Rua do
Comércio, aquela que começava nos oitões do Cine Brasil e do Banco do Nordeste
e terminava na Rua da Feira, na esquina guardada, de um lado pela gentil
agiotagem de Elisa Montalvão e, do outro, pelos panos da loja de tecidos do seu
Inocêncio, pai de Lauro, advogado que gostava de política e admirava meninos...
A mesma do cartório do tio Sininho, onde Dadinha reinava entre certidões e
processos. A rua do escritório de Dorinha, da funerária de seu Tota e da
farmácia de Dr. Aguiar.
A famosa artéria onde, ao lado do escritório de Papai Zeca
(era assim que os netos o chamavam), estava instalada uma das mais misteriosas
casas da minha vida, a tenda de Tio João Déda, repleta de selas, arreios,
rebenques e gibões; cheia de salas misteriosas onde o couro fedia e a cola de
sapateiro impregnava o ambiente. Martelos, pregos, facas amoladíssimas e outros
misteriosos apetrechos faziam companhia à figura hierática de do tio João -
sempre vestido em mescla azul ou uniforme caqui, dono de malhada, montador cuja
perícia na condução dos chamados "cavalos-de-passada", enchiam meus
olhos de admiração.
Mesma rua onde fazia negócios com relógios e jóias o único
estrangeiro de Simão Dias, o italiano Cezário, onde minha tia Didi comprou, em
longuíssimas prestações, o meu primeiro relógio. Também nela a loja "Três
Américas", magazin sortido de um tudo, pertencente ao seu Cícero Guerra,
de balcões envidraçados e uma gravura, quase um pôster, pendurado em
estratégica posição, reproduzindo todas as bandeiras do continente americano,
cravadas no globo terrestre sob a consigna - As três Américas, unidas,
vencerão!
Perto do escritório do velho Zeca, o "bunker" do
PSD, partido que abrigava os seus correligionários sob as espirais de fumo
holandês produzidas pelo cachimbo de Dr. Celso. No centro, pendurado às vigas
do telhado, pendia um jacaré empalhado, réptil que traduzia no seu nome o
batismo singular e endêmico dos partidários do Barão do Mercador (a maldade dos
crocodilos liderados pelos Valadares, preferia chamá-lo de "Pavão" do
Mercador).
Ainda, neste milagroso logradouro o armarinho de Edileuza,
cujo nome me esqueço, onde comprava brinquedos e o bar do seu Abel, famoso
alfaiate e também prefeito, que deputado ao meu lado nos anos 80, cuja tenda -
era assim que se chamavam os estúdios e oficinas no meu tempo simãodiense -
funcionava nos fundos.
E - como posso me esquecer? - nessa mesma rua, o açougue,
construído nos anos 30, na operosa administração de Zeca Déda como Interventor
da Cidade de Simão Dias. Pertinho dali, no mesmo lado da rua, o bar Vezúvio,
pertencente a Nadinho, de comida farta e cheirosa trazida pela sua esposa, anjo
de beleza rara que impunha respeito aos fregueses e ao lado dos filhos deixava
claro que o ambiente era familiar. No mesmo local, antes, funcionara um
frigorífico que me entusiasmava pela inovação mercadológica: peixes em amplos
freezers - pertencia a Netônio de Quincas.
Pronto! É vocé puxar o fio que o novelo da minha infância se
atira embriagado nos braços da minha memória de quase velho...
Marcelo Déda.
Postagem originária da página do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 21 de abril de 2015.
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