Marcelo Déda, o aluno.
Por Ibarê Dantas
Quando Marcelo Déda foi meu aluno por volta de 1983, o país
estava em plena fase de transição do Estado autoritário para a democracia e
havia um amplo debate na sociedade sobre o futuro político do Brasil.
Em Aracaju, as discussões mais acaloradas sobre a política
nacional e local aconteciam no Centro de Estudos e Investigação Social (CEIS),
que funcionava nas segundas-feiras no segundo andar do Instituto Histórico.
Quando presidi essa instituição, no período 1981-1983, havia uma participação
plural de estudantes, professores sindicalistas e militantes de todas as
tendências. Déda compareceu a algumas reuniões, mas não chegamos a nos
aproximar.
Foi nas salas da UFS, quando lecionei a disciplina Política,
optativa para o curso de Direito, que começou nossa interlocução. Naquela
altura, Déda era militante do PT, estava envolvido na política estudantil do
DCE e já havia concorrido a uma cadeira de deputado estadual nas eleições de
1982.
Como a maioria das aulas transcorria com ampla discussão de
textos previamente agendados, um jovem participativo conhecido como Déda
começou a destacar-se com suas intervenções articuladas com discurso de
esquerda. Era um tempo em que o pensamento marxista gozava de grande influência
entre professores e alunos, especialmente na área de Ciências Humanas. Mas isso
não acontecia apenas na UFS. Na Unicamp, onde eu havia cursado o mestrado em
Ciência Política (1979-1980), estudavam-se, sobretudo, os autores marxistas.
Compreende-se então porque boa parte dos meus jovens alunos
politizados dos anos oitenta já chegavam ao curso um tanto inclinados pela
concepção instrumentalista do Estado, ou seja, crentes que a sociedade política
era um mero instrumento da classe dominante. Nesse grupo estava Déda, então um
leninista assumido.
Ainda na Unicamp eu havia elaborado um pequeno trabalho
sobre Lênin, tentando demonstrar que seu pensamento era incompatível com a
democracia. De volta às aulas em Aracaju, enfrentei esse debate recorrendo a
Gramsci, não pelo seu projeto político, mas pela sua teoria da hegemonia, que
fornece uma engenhosa ferramenta para se compreender a complexidade da relação
entre Estado e sociedade. No centro dessa problemática estava a questão democrática,
tema recorrente nessa fase de repúdio das práticas autoritárias.
A partir dessas controvérsias, os debates se intensificavam
e motivavam muito os alunos. Déda, irrequieto e um tanto apressado e afoito,
com seu raciocínio rápido, começava a revelar suas potencialidades com
argumentação criativa. Defendia seus pontos de vista com o ardor e o entusiasmo
de sua juventude, mas nunca faltava com o respeito ao interlocutor. Nesse clima
estimulante, as discussões se ampliaram, foram se tornando cada vez mais
interessantes e começaram a prolongar-se após às aulas nos bares do Siqueira
Campos e adjacências. No início fomos sem acompanhamento. Mas não demorou a
formar-se um grupo interessado, tornando os encontros mais partilhados.
As discordâncias com Déda continuaram, mas nem por isso o
prazer da conversa deixou de progredir. Para o professor, além de serem
momentos instigantes de testar a consistência de seus ensinamentos, o aluno
cativava com a franqueza de suas convicções, com seu sorriso simpático e, sobretudo,
pela disposição de enfrentar o debate com abertura para aceitar novas ideias,
uma postura bem diferente de muitos dos seus colegas e/ou correligionários
fechados num sectarismo estéril.
Mas nem tudo era bem visto. Para os ortodoxos empedernidos,
as ideias do professor passaram a ser vistas como suspeitas, motivando
advertências e críticas. Era como se o mestre estivesse desviando a juventude
dos grandes fundamentos clássicos sagrados. Não obstante as restrições e as
cobranças, o relacionamento prosperava, e a empatia se estabeleceu de tal forma
que passou a resistir ao tempo. Enquanto isso, o jovem estudante vez por outra
surpreendia.
Um exemplo disso aconteceu quando Déda apresentou um
seminário a partir de um texto de Nicos Poulantzas. Como se sabe, este famoso
cientista político grego radicado na França, em seu último livro, deixava
patente que o socialismo ou seria democrático ou não se realizaria. Déda
analisou o texto e fez uma leitura tão rica como jamais eu tinha visto nem
entre os doutores da Unicamp. Eram manifestações de seu potencial criativo e
analítico que desabrochava. Nessa época ainda não dispunha da grande fluência
verbal, que aprimorou ao longo do tempo de forma admirável. Entretanto já
demonstrava bom senso e uma visão de conjunto sem perder de vista os detalhes.
Além dessas características, comecei a notar também no seu modo de agir uma
postura ética e uma autenticidade que embasavam sua honestidade intelectual.
Não obstante continuar reverenciando os clássicos marxistas,
apresentava suas dúvidas e questionava-os ao menos pontualmente, como se
estivesse procurando compreender a história e a realidade social sem os cânones
da ortodoxia. Uma indicação disso era o enfrentamento dos críticos das
experiências do socialismo real sem receios de abalar suas crenças. Por
exemplo, nesse tempo e em nossa convivência posterior como amigo, nunca o vi
defender o respeito aos direitos humanos de forma seletiva, ou seja, restrita
aos países capitalistas. Em sua fala de formatura, como orador da turma, ainda
rendeu homenagens a Lênin. Mais tarde, no seu discurso de posse de governador,
lembrou-se do velho Marx do Dezoito Brumário, mas a filosofia de sua mensagem
fundamentou-se nos postulados democráticos e republicanos, ilustrados em
citações de Paulo Freire, Galeano, Comte-Sponville, Weber e Bobbio.
Quando meu aluno, já se encontrava engajado no Partido dos
Trabalhadores e assim continuou entre os mais devotados, mas nunca o vi
subordinar seus princípios morais às justificativas inverossímeis.
Enquanto pude observá-lo ao longo da existência, os valores
que cultivou na mocidade não foram abandonados. Com sua memória privilegiada,
acumulava saber e empenhava-se em fortalecer suas convicções. Quando as via
abaladas, resistia em certa medida, mas impulsionado por sua honestidade
intelectual terminava se rendendo às evidências. Basta lembrar um episódio que
achei bem ilustrativo.
Na formação estudantil de Déda, a Revolução Francesa foi
apresentada de forma apologética, fato comum entre os historiadores. Anos
depois de Déda haver deixado a Universidade, comentei com ele a respeito de um
curso que ministrei sobre o livro de Hanna Arendt intitulado Da Revolução, no
qual a autora confronta a Revolução Americana com a Francesa, tentando mostrar
a superioridade da primeira. Ele interessou-se pela obra e fiz chegar às suas
mãos um exemplar. Quando voltamos a nos encontrar, ele me disse mais ou menos o
seguinte: “Professor, essa mulher me mata. Leio sua argumentação,
desconstruindo minhas convicções, releio e quando não consigo rebatê-la,
levanto-me e vou à varanda tomar um vento e respirar para me recompor.”
Rimos juntos e voltamos a comentar o livro. Parecia que
continuava como meu aluno. Franco e espontâneo, animado com a vida, tolerante e
generoso com os divergentes, enfrentava as ideias contrárias como se fosse um
processo natural. Foi assim que cresceu. Não foi por acaso que se revelou uma
das figuras humanas mais fascinantes da vida pública brasileira, admirado por
gente de todos os partidos e de todas as classes.
Tê-lo como aluno foi uma honra proveitosa e gratificante.
Além de sua contribuição para meu crescimento intelectual com seus
questionamentos instigantes, ao seu lado vivi grandes momentos de satisfação em
diversos ambientes. Em nossa longa convivência, mais frequente no passado e
esporádica quando governador, tive amigos com formação acadêmica mais sólida,
mas poucos tão atenciosos e ninguém com sua versatilidade, com sua energia, com
sua vivacidade e com sua inteligência. Com essas potencialidades, espírito
público e grande força moral, construiu uma das carreiras mais marcantes da
história política de Sergipe.
Fotos e texto reproduzidos do Facebook/Antonio Francisco
Jesus.
Postagem originária da página do facebook/MTéSERGIPE, de 14 de dezembro de 2013.
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