sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Marcelo Déda, o aluno

 

Marcelo Déda, o aluno.
Por Ibarê Dantas

Quando Marcelo Déda foi meu aluno por volta de 1983, o país estava em plena fase de transição do Estado autoritário para a democracia e havia um amplo debate na sociedade sobre o futuro político do Brasil.

Em Aracaju, as discussões mais acaloradas sobre a política nacional e local aconteciam no Centro de Estudos e Investigação Social (CEIS), que funcionava nas segundas-feiras no segundo andar do Instituto Histórico. Quando presidi essa instituição, no período 1981-1983, havia uma participação plural de estudantes, professores sindicalistas e militantes de todas as tendências. Déda compareceu a algumas reuniões, mas não chegamos a nos aproximar.

Foi nas salas da UFS, quando lecionei a disciplina Política, optativa para o curso de Direito, que começou nossa interlocução. Naquela altura, Déda era militante do PT, estava envolvido na política estudantil do DCE e já havia concorrido a uma cadeira de deputado estadual nas eleições de 1982.

Como a maioria das aulas transcorria com ampla discussão de textos previamente agendados, um jovem participativo conhecido como Déda começou a destacar-se com suas intervenções articuladas com discurso de esquerda. Era um tempo em que o pensamento marxista gozava de grande influência entre professores e alunos, especialmente na área de Ciências Humanas. Mas isso não acontecia apenas na UFS. Na Unicamp, onde eu havia cursado o mestrado em Ciência Política (1979-1980), estudavam-se, sobretudo, os autores marxistas.

Compreende-se então porque boa parte dos meus jovens alunos politizados dos anos oitenta já chegavam ao curso um tanto inclinados pela concepção instrumentalista do Estado, ou seja, crentes que a sociedade política era um mero instrumento da classe dominante. Nesse grupo estava Déda, então um leninista assumido.

Ainda na Unicamp eu havia elaborado um pequeno trabalho sobre Lênin, tentando demonstrar que seu pensamento era incompatível com a democracia. De volta às aulas em Aracaju, enfrentei esse debate recorrendo a Gramsci, não pelo seu projeto político, mas pela sua teoria da hegemonia, que fornece uma engenhosa ferramenta para se compreender a complexidade da relação entre Estado e sociedade. No centro dessa problemática estava a questão democrática, tema recorrente nessa fase de repúdio das práticas autoritárias.

A partir dessas controvérsias, os debates se intensificavam e motivavam muito os alunos. Déda, irrequieto e um tanto apressado e afoito, com seu raciocínio rápido, começava a revelar suas potencialidades com argumentação criativa. Defendia seus pontos de vista com o ardor e o entusiasmo de sua juventude, mas nunca faltava com o respeito ao interlocutor. Nesse clima estimulante, as discussões se ampliaram, foram se tornando cada vez mais interessantes e começaram a prolongar-se após às aulas nos bares do Siqueira Campos e adjacências. No início fomos sem acompanhamento. Mas não demorou a formar-se um grupo interessado, tornando os encontros mais partilhados.

As discordâncias com Déda continuaram, mas nem por isso o prazer da conversa deixou de progredir. Para o professor, além de serem momentos instigantes de testar a consistência de seus ensinamentos, o aluno cativava com a franqueza de suas convicções, com seu sorriso simpático e, sobretudo, pela disposição de enfrentar o debate com abertura para aceitar novas ideias, uma postura bem diferente de muitos dos seus colegas e/ou correligionários fechados num sectarismo estéril.
Mas nem tudo era bem visto. Para os ortodoxos empedernidos, as ideias do professor passaram a ser vistas como suspeitas, motivando advertências e críticas. Era como se o mestre estivesse desviando a juventude dos grandes fundamentos clássicos sagrados. Não obstante as restrições e as cobranças, o relacionamento prosperava, e a empatia se estabeleceu de tal forma que passou a resistir ao tempo. Enquanto isso, o jovem estudante vez por outra surpreendia.

Um exemplo disso aconteceu quando Déda apresentou um seminário a partir de um texto de Nicos Poulantzas. Como se sabe, este famoso cientista político grego radicado na França, em seu último livro, deixava patente que o socialismo ou seria democrático ou não se realizaria. Déda analisou o texto e fez uma leitura tão rica como jamais eu tinha visto nem entre os doutores da Unicamp. Eram manifestações de seu potencial criativo e analítico que desabrochava. Nessa época ainda não dispunha da grande fluência verbal, que aprimorou ao longo do tempo de forma admirável. Entretanto já demonstrava bom senso e uma visão de conjunto sem perder de vista os detalhes. Além dessas características, comecei a notar também no seu modo de agir uma postura ética e uma autenticidade que embasavam sua honestidade intelectual.

Não obstante continuar reverenciando os clássicos marxistas, apresentava suas dúvidas e questionava-os ao menos pontualmente, como se estivesse procurando compreender a história e a realidade social sem os cânones da ortodoxia. Uma indicação disso era o enfrentamento dos críticos das experiências do socialismo real sem receios de abalar suas crenças. Por exemplo, nesse tempo e em nossa convivência posterior como amigo, nunca o vi defender o respeito aos direitos humanos de forma seletiva, ou seja, restrita aos países capitalistas. Em sua fala de formatura, como orador da turma, ainda rendeu homenagens a Lênin. Mais tarde, no seu discurso de posse de governador, lembrou-se do velho Marx do Dezoito Brumário, mas a filosofia de sua mensagem fundamentou-se nos postulados democráticos e republicanos, ilustrados em citações de Paulo Freire, Galeano, Comte-Sponville, Weber e Bobbio.

Quando meu aluno, já se encontrava engajado no Partido dos Trabalhadores e assim continuou entre os mais devotados, mas nunca o vi subordinar seus princípios morais às justificativas inverossímeis.

Enquanto pude observá-lo ao longo da existência, os valores que cultivou na mocidade não foram abandonados. Com sua memória privilegiada, acumulava saber e empenhava-se em fortalecer suas convicções. Quando as via abaladas, resistia em certa medida, mas impulsionado por sua honestidade intelectual terminava se rendendo às evidências. Basta lembrar um episódio que achei bem ilustrativo.

Na formação estudantil de Déda, a Revolução Francesa foi apresentada de forma apologética, fato comum entre os historiadores. Anos depois de Déda haver deixado a Universidade, comentei com ele a respeito de um curso que ministrei sobre o livro de Hanna Arendt intitulado Da Revolução, no qual a autora confronta a Revolução Americana com a Francesa, tentando mostrar a superioridade da primeira. Ele interessou-se pela obra e fiz chegar às suas mãos um exemplar. Quando voltamos a nos encontrar, ele me disse mais ou menos o seguinte: “Professor, essa mulher me mata. Leio sua argumentação, desconstruindo minhas convicções, releio e quando não consigo rebatê-la, levanto-me e vou à varanda tomar um vento e respirar para me recompor.”

Rimos juntos e voltamos a comentar o livro. Parecia que continuava como meu aluno. Franco e espontâneo, animado com a vida, tolerante e generoso com os divergentes, enfrentava as ideias contrárias como se fosse um processo natural. Foi assim que cresceu. Não foi por acaso que se revelou uma das figuras humanas mais fascinantes da vida pública brasileira, admirado por gente de todos os partidos e de todas as classes.

Tê-lo como aluno foi uma honra proveitosa e gratificante. Além de sua contribuição para meu crescimento intelectual com seus questionamentos instigantes, ao seu lado vivi grandes momentos de satisfação em diversos ambientes. Em nossa longa convivência, mais frequente no passado e esporádica quando governador, tive amigos com formação acadêmica mais sólida, mas poucos tão atenciosos e ninguém com sua versatilidade, com sua energia, com sua vivacidade e com sua inteligência. Com essas potencialidades, espírito público e grande força moral, construiu uma das carreiras mais marcantes da história política de Sergipe.

Fotos e texto reproduzidos do Facebook/Antonio Francisco Jesus.

Postagem originária da página do facebook/MTéSERGIPE, de 14 de dezembro de 2013.

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