Mais uma homenagem a Zé Peixe,
reproduzida do Blog de Marcos Cardoso no Portal Infonet de 29.04.2012
No dia 30 de outubro de 2000, na
Folha de S. Paulo, o jornalista Fernando Gabeira publicou o texto “O mar não
está mais para a família Peixe”, um libelo contra a agressão do homem contra a
natureza e uma homenagem ao amigo Zé Peixe, falecido na última quinta-feira,
aos 85 anos. Vale reproduzir o texto aqui:
“Aracaju, para quem não conhece,
ainda é uma tranquila capital do Nordeste. Novos e imponentes edifícios foram
erguidos nos últimos anos, shoppings centers brotaram aqui e ali, como, de
resto, aconteceu em todas as principais cidades do país.
Só que grande parte da Aracaju
moderna foi conquistada aterrando os manguezais. As multidões que atravancam as
galerias climatizadas das butiques, na verdade, são os vencedores pisoteando o
túmulo de uma paisagem dilacerada para sempre.
A família Peixe, Zé e Rita, irmãos
que nasceram nas primeiras décadas do século 20, ele nos anos 20, ela nos anos
30, contemplam assustados o rumo que o progresso tomou, soterrando as imagens
da infância à beira-mar.
Zé Peixe, hoje com 74 anos, é o
mais importante prático da história do Brasil. Conhece como ninguém a barra do
rio Sergipe e consegue levar navios para um porto seguro, analisando ventos,
prevendo o movimento das areias e, às vezes, jogando-se no mar bravio para
achar a passagem.
Zé Peixe é uma lenda. Antes mesmo
de morrer, virou estátua de bronze, mas rejeita a idéia de se aposentar.
Continua dormindo no chão, à espera de que o chamem para levar um navio a uma
rota segura, ou salvar marujos e barcos perdidos. Ele salva mesmo. Não só
porque é capaz de nadar 11 km, mas porque se atira da altura de 17 metros,
cerca de quatro andares, nas águas do mar.
Zé Peixe ainda mora na orla.
Mergulha todas as manhãs, mas reconhece que a água está poluída com esgoto.
Rita, que aos 15 anos salvou, ao lado do irmão, uma tripulação de um barco do
Rio Grande do Norte, hoje só nada na piscina de sua casa.
A história da família Peixe é
ligada aos manguezais de Aracaju. Zé conhece todos e previu o desequilíbrio que
os aterros iriam provocar. Mas não conseguiu impedi-los. Vive para o mar, sai
de manhã, volta no final da tarde, só come frutas e diz que, desde a Segunda
Guerra Mundial, não toma banho de água doce. Olhando a pele curtida de sol e
sal, você acredita nele. Zé e Rita Peixe nadam desde meninos. Nem se lembram se
um dia aprenderam a nadar. Acham que já nasceram sabendo.
Num casarão velho em Aracaju, Zé
Peixe costuma olhar os grandes edifícios e se lembrar dos manguezais da
infância. Seu primeiro barco foi feito com um baú da família, pequena
travessura que apontava para o destino no mar. Ele viu os corpos de náufragos
de um navio, o Aníbal Benevolo, afundado por bombardeio alemão na Segunda
Guerra. A partir daí, nunca mais ninguém se afogou perto dele.
Agora, não só os manguezais da
infância foram embora. Os próprios navios foram desaparecendo a partir do
grande impulso rodoviário da década de 50. A escolha do automóvel como símbolo
da liberdade individual e dos shoppings centers como espaço de comércio e
convivência mudou o horizonte. Zé Peixe ainda ensina ao seu neto os mistérios
da barra do rio Sergipe, mas sabe que, há algumas décadas, o mar não está mais
para peixe em Aracaju.
Conheci Zé Peixe em 96. Foi me
esperar no aeroporto e tinha medo de não poder entrar, porque estava descalço.
Só usa sapatos aos domingos, para entrar na missa dominical. Desde o meio da
década, interesso-me por ele e penso na importância de preservar suas memórias.
Zé Peixe vive no casarão da
família e todos os seus papéis, com medalhas, títulos e diplomas, estão num
quarto cheio de poeira e bolor, alguns já literalmente estraçalhados. Isso tem
um lado bom, porque ele percebe que consegue sobreviver às suas próprias
memórias, que vão se acabando enquanto ele continua firme, nadando de uma praia
para outra, levando tudo o que precisa num plástico colado ao calção.
Para o Brasil, no entanto, era
fundamental que encontrássemos alguma maneira de preservar a memória desse
homem que assombrou vários capitães estrangeiros. Um russo chegou a pedir que o
detivessem quando estava para se lançar ao mar.
Achou que Zé Peixe estava se suicidando,
quando, na verdade, estava fazendo o que mais gostava de fazer: jogar-se dos
navios que levava para fora da barra e voltar nadando como um menino dos
manguezais.”
Postagem original na página do Facebook em 29 de Abril de 2012.
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